Muito tem se falado ultimamente sobre “corrupção” e não restam dúvidas do potencial destrutivo que as práticas nela contidas possuem sobre as sociedades democráticas.
A palavra corrupção pode significar, em origem, ruptura ou fragmentação do “core”, ou do coração, equivalente figurativo do espírito ou da alma onde toda pessoa abriga as virtudes de sua humanidade, como a honestidade, a empatia, a benevolência, a coragem, a responsabilidade – tudo que a torna íntegra, ao invés de corrompida, corrupta.
Na nossa Constituição Federal de 1988, a prática de corrupção está relacionada ao abuso de poder, a práticas ilícitas e a violações de direitos e da soberania popular previstos pela Lei, seja por má-fé, má-intenção ou improbidade de quem exerce as prerrogativas da administração pública. Ou seja, o uso indevido do poder pelos representantes do Estado, seja em benefício próprio ou em prejuízo dos demais, é a forma mais clara de corrupção que estamos propensos a reconhecer.
Engana-se, portanto, quem pensa que a corrupção é apenas desviar (ou roubar) dinheiro público e esconder em contas secretas e paraísos fiscais no exterior. Tampouco a corrupção deve ser vista como um gesto de descuido movido pela ganância ou pela falha moral do sujeito que busca enriquecer. A corrupção, num sistema orientado pela competição, pelo individualismo e pela busca de privilégios, há muito tempo se tornou estrutural e, lamentavelmente, é confundida, por muitos, com “esperteza”, “jeitinho” ou mesmo “oportunidade”. Há casos em que a corrupção é praticada até por aqueles que juram combatê-la, como juízes e promotores.
Para que fique ainda mais claro: empregar com cargos públicos parentes e amigos, que muitas vezes não trabalham, em troca de receber de volta parte de seus salários pagos pelo Estado (prática da rachadinha), é corrupção. Favorecer empresas e empresários por interesses particulares em comum, e não pela qualidade do serviço que prestam à sociedade, desrespeitando a livre concorrência e a responsabilidade fiscal, geralmente com superfaturamento de obras e notas falsas de serviços nunca prestados, troca de informações privilegiadas e tráfico de influência, é corrupção. Usar recursos públicos retirados da Educação, da Saúde, da Segurança, para financiar comícios disfarçados de shows, inclusive com apologia a sexismo, violência contra a mulher e uso abusivo de álcool, é corrupção.
Sucatear e desmontar Universidades Públicas, assim como o Sistema Único de Saúde, e programas sociais de acesso à casa própria e de incentivo à Cultura, para beneficiar o enriquecimento de empresas privadas e negar direitos fundamentais às pessoas mais pobres, é corrupção. Permitir que a política de preços do petróleo encareça o combustível para a classe trabalhadora, assim como os transportes, alimentos e energia, para ampliar as margens de lucro e dividendos de megainvestidores, é corrupção. Deixar o povo se afundar em dívidas, com suas poucas reservas financeiras e poder aquisitivo sendo corroídos pela inflação, enquanto os bancos quebram recordes de faturamento, é corrupção. Se apoiar na farda e nas patentes para justificar massacres, violência contra grupos marginalizados, repressão a quem questiona o abuso de autoridade e a “justiça com as próprias mãos”, é corrupção.
Flexibilizar Leis que permitem a destruição ambiental e a exploração social de povos vulneráveis para garantir os ganhos de um pequeno grupo de latifundiários e empresas de mineração, especialmente em troca de apoio político e participação nos lucros, é corrupção. Negligenciar apoio à população que necessita de auxílio médico, salário digno, moradia segura, alimentação saudável e acolhimento, muitas vezes incitando o ódio contra quem vive em situação de pobreza ou contra quem as auxilia, é corrupção.
Coagir funcionários e funcionárias a votar em um determinado candidato, que geralmente favorece os patrões e a classe empresarial de maior poder aquisitivo, é corrupção. Usar de templos religiosos, de altares espirituais e figuras sagradas para chantagear devotos e sua fé para alcançar os próprios objetivos, é corrupção.
Estimular o negacionismo e a descrença na Ciência, assim como nos meios de comunicação, nas escolas e nas Instituições democráticas, para manipular as pessoas através de sensacionalismo, mentiras e terrorismo psicológico, é corrupção. Abusar de pessoas vulneráveis, frágeis, desamparadas, desinformadas ou desesperadas, manipulando-as com notícias falsas, promessas vazias e demagogia, é corrupção.
Para combater esse terrível mal, tão tóxico e nocivo às nossas liberdades e aos nossos direitos, não basta usar a corrupção como argumento moralista para justificar outras práticas corruptas, ilegais, imorais ou injustas.
O resgate do senso de coletividade e de solidariedade é imprescindível às pessoas que verdadeiramente desejam superar a corrupção estrutural e dar integridade às democracias populares. Mas será esse o desejo dos que detêm o poder?
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.