O título brasileiro Enquanto Houver Amor (Hope Gap, Reino Unido, 2019, 100 min.), de William Nicholson, sugere comédia romântica ou história edificante e adocicada. O original (algo como “vão de esperança”), no entanto, revela-se drama melancólico, quase desesperançado, que vislumbra uma brecha, não a da salvação catártica, mas da opção, da possibilidade e resulta em filme tenso e doce, poético e árido, construído entre fechaduras e aberturas.
Observe a sequência em que Grace (Annette Bening) tenta convencer o filho Jamie (Josh O’Connor) a refazer a fé perdida e pede ao marido Edward (Bill Nighy) para definir Deus. “Deus não é informação. Seria como tentar definir amor”. O casal serve a conversa teológica no cardápio do jantar no qual recepciona o filho na casa localizada em Hope Gap, lugarejo próximo da litorânea Seaford Beach, Inglaterra.
Grace está tão convicta da fé que bravamente confessa e que a leva à missa todos os domingos quanto do amor dedicado a Edward, como se a teologia fosse espécie de variações sobre o tema do amor e, este, extensão da teologia – ambos arraigados feito as rochas que rodeiam o mar onde ela costuma referendar (ou questionar) suas crenças.
Quando a aparente infalibilidade da fé e do amor troca a firmeza das rochas pela porosidade da areia ela entende a formulação do marido: Deus e o amor não são informações.
Então, a fé, impalpável crença que dispensa provas, e o amor, que parece sólido, mas insiste em ser escorregadio, tornam-se impossibilidades. E a mulher que prepara antologia de poemas descobre a vida sem poesia, apegada ao amargor das memórias: a mala “horrorosa” de quem partiu levando poucos pertences, o peso dos sapatos rangendo a escada, a batida seca da porta, a ausência de despedida e das últimas palavras que poderiam ocultar sinais vitais capazes de lhe acender esperanças, a penumbra da casa silenciosa, o filho em desamparo buscando salva-vidas no mar da infância, ou na TV que relata um lugar de colinas e vales verdes e de rios caudalosos.
Edward está em busca de coisas simples, porém, valiosas. Como professor, relata os horrores de uma guerra na qual carroças com corpos feridos adentram terrenos pedregosos para que, no balançar, caiam sugerindo acidente; para evitar a culpa, os condutores não olham para trás – prova inconteste de que fracos morrem e fortes sobrevivem.
O solidário e sensível Jamie mora só. Diz ter namoradas, mas nunca está acompanhado e se divide, angustiado, entre pai e mãe. A solidão poderia ser aplacada no contato com o referido mar da infância onde, parece, ter conhecido a alegria, mas, este, tampouco consegue levantar-lhe o ânimo. Grace, por sua vez, troca a expressão de mulher de convicções inabaláveis que lhe emolduravam o rosto pela máscara da dor.
Enquanto Houver Amor parece avançar de modo irreversível rumo ao trágico, mas o belo roteiro autobiográfico do próprio William Nicholson se encarrega de equilibrar emoções. Ele o recheia de ótimos diálogos e cuida para que, encenados, não pareçam artificiais, e que os poemas ditos e as dores e sofrimento dos personagens passem pelo filtro da sutileza.
E, claro, o humor, igualmente sutil, ao sabor dos britânicos, tem o importante papel de aliviar tensões, como o expresso na cena em que Jamie e o parceiro de trabalho, Dev (Ryan McKen), trocam, via computador, ótimo diálogo a respeito da morte. Ou de como a autoritária Grace supre carências afetivas adquirindo um cão fiel.
No papel de diretor, Nicholson conduz a história com segurança contando com a parceria do excepcional trio principal de atores e não se deixa seduzir pelo encanto das imagens bonitas da cidade turística, mas as integra como parte essencial da narrativa. Idêntico direcionamento se nota na trilha de Alex Heffes, melancólica na medida certa e tão bela quanto delicada.
Por contar a história de casal maduro que completa 29 anos de convivência e por não estabelecer a clássica divisão de heróis e heroínas em contraponto com vilãs ou vilões, trata-se de filme raro. São personagens criados da mesma matéria-prima de homens e mulheres comuns; portanto, humanamente contraditórios e humanamente coerentes.
Em exibição nos cinemas a partir de quinta-feira, 18/11/2021
João Nunes é jornalista e crítico de cinema