A sabedoria popular ensina que “errar é humano”. Na ascensão das tecnologias de inteligência artificial, somada à obsessão pela performance impecável na sociedade do desempenho e da vigilância, a afirmação ganha sentido ainda mais amplo, provocando a pensar que, além de intrínseca à humanidade, é sobre a capacidade de errar (e tudo que vem depois) que se constrói nossa humanidade.
Fruto das relações entre instintos básicos de sobrevivência, interações sociais, desejos inconscientes e vínculos afetivos que vão se construindo desde o nosso nascimento, o desenvolvimento do ser humano é complexo, singular e subjetivo, embora condicionado a regras e protocolos de convívio coletivo. É da miríade de possibilidades entre os universos em permanente transformação em cada pessoa que se originam traços civilizatórios dotados de criatividade e poder criador de realidades que podem pender tanto para a repressão da liberdade, a produção da miséria e a violência das guerras, quanto para a generosidade do acolhimento, a contemplação das artes e a cooperação na resolução de problemas que colocam a vida das pessoas e o equilíbrio ecológico do planeta em risco.
A longa jornada de racionalização e controle das emoções, bem como o desenvolvimento de competências e habilidades para lidar com os desafios e obstáculos do dia-a-dia começam cedo: abrir os olhos, erguer a cabeça, balbuciar as primeiras sílabas, compreender o significado de gestos, cores, formas, letras, números, seguir regras (muitas regras), verbalizar pensamentos, racionalizar sentimentos, ponderar emoções, dimensionar o tempo, organizar a rotina, planejar o futuro, produzir, consumir, exibir – além de comer e dormir, e, claro, considerar que tudo pode mudar repentinamente diante de acontecimentos que escapam completamente do nosso ilusório controle.
Nem o mais sofisticado cálculo matemático ou a mais transcendental previsão mística seria capaz de equacionar ou determinar a fórmula lógica ou mágica para se viver.
Errar, durante o atravessamento de infinitos caminhos possíveis que, paradoxalmente, levam todos ao mesmo fim, é o segredo nada secreto para continuar construindo as travessias de que se constitui nossa existência. Impossível viver sem sentir frustração, decepção, raiva, indignação – sentimentos desencadeados pelos limites impostos e transtornos causados pelos erros diante da busca por aquilo que queremos alcançar.
Se a resposta ao erro for o medo, a covardia, a arrogância, a apatia, ele pode se tornar o ponto final de uma jornada precocemente encerrada, aprisionando-nos numa eterna melancolia, alimentando angústias que nunca germinam coisas boas; ou numa zona de conforto de letargia e mediocridade, com muros altos de autoengano e negacionismo ao redor de egocentrismos.
Confrontado com coragem, o erro se torna combustível para o movimento incessante guiado pelas escolhas que fazemos e ações que realizamos.
A raiva e a indignação precisam ser lapidadas com humildade, à luz da razão, para que a tentativa de superar um erro não leve a outros, maiores e mais graves, no que pode virar uma escalada de ressentimentos, vingança e insensatez.
Na virtualização da vida, quase não há espaço para os erros – e tampouco para aprender com eles. Tudo precisa estar pronto e padronizado, alinhado às tendências de consumo e à estética objetificadora de uma vida mercantilizada, de ostentação e competição. Diferenças e diversidades são “corrigidas” pela inteligência artificial de aplicativos e filtros que as veem como falhas indesejadas. Crianças e adolescentes que nascem e crescem abduzidas por esse ambiente têm enorme dificuldade para lidar com os erros, desenvolvendo neuroses na busca impossível por controle e perfeição. Na impossibilidade de atingir suas metas, acabam se tornando inertes, incapazes de reagir com criticidade e autonomia ao que está ao seu redor – tudo aquilo que, no mundo real, não pode ser cancelado, silenciado ou bloqueado.
Aceitar o erro, compreendê-lo e ressignificá-lo como parte do processo de aprendizagem é importante! Para isso, é preciso perdoar-se.
E pedir desculpas caso o erro tenha afetado outras pessoas, além de agir, com sinceridade e afinco, para corrigi-lo, repará-lo ou, ao menos, mitigá-lo. A mesma sabedoria popular do “errar é humano” ensina que “perdoar é divino”. Mas pedir perdão, com arrependimento consciente, e não por medo ou coerção, e também perdoar, deixando para trás remorsos e mágoas, precisa ser entendido como um traço de humanidade. Modéstia e desapego são virtudes imprescindíveis para seguirmos caminhando na lida com os erros – os nossos, e os de outras pessoas que atravessam por caminhos parecidos.
Evidente que, assim como o perdão deve ser sincero, o erro que leva ao crescimento e à aprendizagem precisa ser genuíno e espontâneo, fruto da inocência, da falta de maturidade e da inexperiência diante das situações enfrentadas. O erro intencional, opostamente, faz parte de estratégias de manipulação dissimuladas, baseadas muito mais numa retórica de perversidades, mentiras e cinismo do que no processo de amadurecimento e aprendizagem.
Na vida híbrida que levamos, lidar com os erros como uma falha de programação no cumprimento de funções pré-determinadas nos desumaniza.
É assim que as máquinas de inteligência artificial detectam e reagem a eles – eliminando-os ao sobrescrever rotinas codificadas incapazes de contemplar a experiência de satisfação e alegria que vem com a superação do erro. Ou de perceber que nem todo desvio de rotinas programadas e resultados diferentes do esperado são um erro. Longe disso, o que restaria na história da humanidade se todos os erros fossem apagados?
Levantar, cair e levantar. Tentar, fracassar, aprender e tentar de outro jeito. Ensaiar novas respostas, mudar as perguntas. Romper padrões, questionar dogmas, subverter intransigências, quebrar tabus, demolir mausoléus, desafiar certezas, mover montanhas, escrever estórias, construir pontes, costurar conexões, expandir consciências, inventar soluções, aceitar os erros e criar mundos mais humanos entre possibilidades e acertos.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.