Thayná Cândido da Silva é uma jovem de 25 anos que mora no Jardim Rosália 4, região do Padre Anchieta, em Campinas. Sua preocupação diária é conseguir alimento. No barraco onde mora, a despensa está praticamente vazia. Um vidro com arroz repousa sobre a mesa improvisada. Ao lado, uma garrafinha de coca-cola e uma mamadeira vazia. Sua casa é feita com madeirites e lonas. Uma porta velha de aço serve de parede num dos lados. Há duas geladeiras, mas a cena é angustiante. Dentro delas, apenas panelas com sobras de comida, alguns maços de verdura, catchup, molho de salada e retalhos de carne. Aliás, esses restos doados por açougue, em condições sanitárias normais, jamais poderiam servir de alimento. O cenário de vulnerabilidade se completa com as frestas do barraco, por onde entram chuva e vento. Essa é outra preocupação da família: perder o pouco que tem pelas intempéries do tempo.
A realidade de Thayná contrasta com uma Campinas pujante, uma cidade que é polo de alta tecnologia, berço de universidades e endereço de centros de excelência e unidades de pesquisa. É também um pilar econômico de dar inveja a estados e até países. Esse retrato de vanguarda e desenvolvimento esconde seus abismos sociais. A vida da jovem catadora de papelão e de materiais recicláveis pinta um quadro de extrema pobreza, agravada de forma contundente pela pandemia da Covid-19.
Com a severa perda de renda e os impactos derivados da crise, cotidianos como os de Thayná resumem-se à tarefa primordial de sobreviver e garantir o mínimo de dignidade para o filho pequeno, Enzo Henrique, 3 anos.
Aliás, o número de famílias que vivem em situação de extrema pobreza em Campinas teve um crescimento expressivo na pandemia. Dados da Prefeitura apontam avanço de 16,9%. Esse estrato social inclui grupos familiares que vivem com inimaginável renda mensal de até R$ 89,01 por pessoa. Em dezembro de 2020, eram 38.279 grupos. Em junho último, alcançaram 44.774 núcleos.
O aumento, de acordo com números da Prefeitura de Campinas, ocorre também na chamada faixa da pobreza, que constitui núcleos com renda mensal de R$ 89,01 a até R$ 178,00 por pessoa. Nesse estrato, o crescimento na pandemia foi de 0,98%. Eram 8.587 grupos em 2020; agora são 8.672.
Insegurança alimentar não é novidade
A insegurança alimentar não é novidade em Campinas. Regiões Sul, Sudoeste e Noroeste da cidade mantêm, há décadas, bolsões de pobreza e núcleos populacionais com carência evidente. O poder público e as redes de proteção privadas sempre estiveram atentas a isso, oferecendo atendimento social e dignidade.
Nas décadas de 80 e 90, com uma cidade em franca expansão no que se convencionou chamar de “O outro lado da Anhanguera”, inciativas de pastorais, como a da Criança, capitaneada por grupos ligados à Igreja Católica e à ação da médica missionária Zilda Arns, levavam solidariedade e reforço alimentar aos núcleos mais pobres da cidade. O principal instrumento era o farelo multimistura, que salvou milhares de crianças – da morte e da desnutrição. Em seu composto, arroz e trigo triturados, casca de ovo e folha de mandioca.
No cenário atual, diversos programas e iniciativas têm atenuado a fome e levado alimento a milhares de famílias. A pandemia afetou a renda dos mais vulneráveis e de quem jamais imaginou ficar sem emprego. Neste sentido, têm feito a diferença e colaborado de forma decisiva, ações bem-sucedidas como o trabalho do Instituto de Solidariedade para Programas de Alimentação (ISA), em parceria com permissionários da Ceasa, a campanha Mobiliza Campinas liderada pela Fundação Feac, e o esforço da Central Única das Favelas (Cufa).
O Hora Campinas contará numa série de três reportagens, a partir desta quarta-feira (27), o drama de famílias campineiras que estão vivendo com extrema dificuldade. Abordará também iniciativas da sociedade civil que estão atenuando esse dura realidade. É a série “Fome e Solidariedade”.
Retalhos doados pelo açougue
Thayná define sua vida atualmente como um “sufoco”. Ela diz que cata materiais recicláveis para sustentar o filho. No barraco vivem o filho Enzo, Thayná, sua mãe, Eliana, e o padrasto. A jovem exibe no tórax uma tatuagem com o nome da mãe. Os quatro não sabem o que comerão no dia. Tudo é improvisado. Tudo depende de doações e das circunstâncias. O próprio subemprego de vender materiais descartados, com algum valor econômico, teve impacto na pandemia. Quem depende desse segmento teve que se adaptar, já que por conta do isolamento, a dinâmica de circulação nos pontos de coleta também mudou. A renda minguou. “Tô passando necessidade”, resume. Sua renda em dias úteis é entre R$ 40 e R$ 50. Seu carrinho de reciclagem é pequeno, conta ela, o que reduz as chances de uma renda maior.
Ela afirma priorizar a compra de leite e fralda para o filho, já que o pai do menino “não ajuda”. Thayná afirma não estar cadastrada em nenhum programa oficial de ajuda do poder público. Diz também que não é atendida pelo Bolsa Família. Por isso, as doações são essenciais. “A gente vai no açougue e eles dão retalhos”.
Esses cortes de carne, segundo ela, são cozidos, e o ensopado é misturado no arroz e feijão.
Parceria com a mãe
Thayná Cândido da Silva afirma que a labuta diária em busca de renda e comida se dá em parceria com a mãe, Eliane. “Uma ajuda a outra. A gente vai lutando como pode”, resigna-se. De manhã, geralmente não há café da manhã. Por volta das 9h, já começa o preparo do almoço, a principal refeição do dia. À tarde, bolinho de arroz com farinha de trigo. E à noite, a janta é a sobra do almoço. Sobre o futuro, um projeto simples e direto:
“Eu queria ter uma vida melhor, ter as coisas dentro de casa, ter um café da manhã. Arrumar a minha casa”
Videoreportagem: Leandro Ferreira