Há muito (desde “Tudo sobre Minha Mãe”, 1999, talvez), Pedro Almodóvar iniciou lento e consistente amadurecimento técnico e estético. “Mães Paralelas” (Madres Paralelas, Espanha, 2021, 2h05) é a mais completa tradução dessa evolução do cineasta espanhol.
Natural seria, também, o crescimento artístico. E houve. Vê-se com idêntico prazer o delicioso “Ata-me”, de 1989, e o comovente “Mães Paralelas” porque ambos foram gerados pelo mesmo talentoso artista. Neste, porém, observa-se nítido aperfeiçoamento desse talento.
Nos primeiros filmes, as “cores de Almodóvar” (como Adriana Calcanhoto canta, em “Esquadros”, esta característica do cineasta) explodiam escancaradas e berrantes na tela.
Em “Madres Paralelas”, continuam vibrantes; porém, harmoniosas, melhor trabalhadas junto à direção de arte e à fotografia. Mesmo nas cenas finais, de contexto trágico, as cores se destacam; porém, são solenes e respeitosas.
As atuações também mudaram. Se, antes, o diretor apostava em tipos e resvalava no performático; hoje, seus atores e atrizes constroem personagens e atuam. Rossy de Palma rouba a cena em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988) ao compor um tipo exótico (para nós).
Os anos lhe marcaram o corpo e, no filme, como Elena, melhor amiga de Janis (Penélope Cruz), ela se sustenta com nuances próprias de personagem.

E Penélope não está indicada ao Oscar por acaso. Ela tem papéis importantes na filmografia de Almodóvar, como “Volver” (2006) e “Dor e Glória” (2019); porém, aos poucos, a atriz trocou a postura de mulher exuberante, que causa impacto, pela doação crível à personagem que interpreta.
E, mais significativo, Almodóvar sempre pareceu usar filmes como palco de provocação. Não lhe importava a bizarrice do tema (“Fale com Ela”, 2002, por exemplo) ou cenas ousadas (“Lei do Desejo”, 1986). Ele confiava na capacidade de, independentemente do assunto, conquistar a empatia do público.
Em “Madres Paralelas”, ele se acerca das provocações, na relação entre Janis e Ana (Milena Smit), como se reiterasse o cartaz de divulgação: “um filme de Almodóvar”. Entretanto, vai além, ao assumir papel social e histórico de personalidade artística do país dele e recorre ao triste episódio da guerra civil espanhola como base narrativa, simbolizando gesto de gratidão às gerações passadas e de compromisso com as novas.
Para tanto, insere no roteiro a montagem da peça “Dona Rosinha – A Solteira”, de Federico García Lorca, morto em 1936 pelo regime franquista e, na qual, Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), mãe de Ana, interpreta a personagem-título. Não se trata apenas de evocar as habilidades do poeta e dramaturgo, mas trazê-lo à memória para ser lembrado e reverenciado pelo público atual.

Lorca serve de fundamento ao roteiro que narra episódio de familiares de Janis, também mortos sob a ditadura de Franco. Mais que desenterrar ossos, Almodóvar revisita e revisa a história, demonstração de um diretor amadurecido e tão instigante como quando começou.
Contudo, entre as muitas voltas das duas personagens principais e com sinais de provocação aqui e ali, como quem quer deixar a marca bem patente, ele insere Arturo (Israel Elejalde) para cumprir o mais convencional dos relacionamentos. E não há mal algum nessa postura. A maioria das relações humanas é convencional.
Mas, pode ser que, se continuar filmando (certamente, ocorrerá), ele comece a perseguir apenas a perfeição técnica, estética e artística porque, afinal, provocação se adequa melhor às rebeldias, quase sempre sem causas, próprias da juventude.
Na maturidade física, o excepcional diretor parece mais interessado na arte pura e simples. Trafegando pelo gênero no qual se sente mais confortável, o melodrama, e embalado pela beleza da trilha de Alberto Iglesias (também indicada ao Oscar), ele constrói “Mães Paralelas” sobre alguns dos mais nobres sentimentos humanos: apreço pela maternidade demonstrado por Janis e Ana, generosidade de Janis e compromisso dele próprio com a história.

Lorca, assim como as famílias e respectivas narrativas representadas neste resgate histórico, se sentiria profundamente grato por receber como tributo um filme tão bonito e tão bom.
* O filme, disponível na Netflix, tem duas indicações ao Oscar 2022: Penélope Cruz (atriz) e trilha sonora (Alberto Iglesias)