A medicina e as ciências da vida avançaram nestes últimos 50 anos mais do que em toda a história da humanidade. Este fato é suficiente para falarmos em melhoria de nosso trabalho em termos de humanidades? Certamente, dentro do contexto da pandemia tivemos a perfeita noção de nossa extraordinária capacidade científica e assistencial. A percepção da sociedade e mesmo de nós profissionais de saúde sobre a importância de nosso trabalho, do SUS, do sistema privado de saúde, da humanização na área da saúde, etc., nunca foi tão sensível e admirável.
Algumas questões, porém, são críticas: estamos formando médicos e profissionais de saúde com muitos conhecimentos, muitas habilidades técnicas e deslumbramento pela tecnologia? Estes profissionais preferirão o distanciamento físico do paciente e seriam especialistas em doenças? Ou serão também especialistas em gente? O avanço tecnológico poderá causar crise na humanização da Medicina? Por que humanidade na área de saúde é importante? Sabemos que na área da Saúde é fundamentada em “gente cuidando de gente” e assim será sempre, em nossa opinião. Ser médico ou outro profissional de saúde é um raro privilégio: convivemos e conviveremos com todos os insights sobre a vida, o morrer e a morte. Essa posição privilegiada pode ser ampliada pela competência e humanidades de cada profissional da área da saúde.
O Brasil, desde 2003, implantou a “Política Nacional de Humanização (PNH) – Humaniza SUS”. O PNH visa qualificar a saúde pública no Brasil e incentivar trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários e estar presente e inserida em todas as políticas e programas do SUS. A humanização baseia-se na valorização dos usuários, dos trabalhadores e dos gestores no processo de atenção à saúde. A Medicina exercida com ciência, competência e compaixão é ARTE que poderá diluir parte do individualismo que cerca nossa sociedade.
A Resolução nº 3 de 2014 do Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação em suas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Medicina em seu artigo 3º diz que: “O graduando em medicina terá formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano e tendo como transversalidade em sua prática, sempre, a determinação social do processo de saúde e doença”. As Nações Unidas apoiam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e colocam a saúde e o bem-estar como o terceiro item dentro os bens fundamentais dos seres humanos.
Estudo recente (1) discute se a humanização afeta positivamente a eficácia dos serviços públicos brasileiros. O artigo coloca que a humanização da saúde, como descrito no PNH, depende de seis fatores fundamentais: acolhimento, ambiência, equipe ampliada e compartilhada, competência profissional, valorização do trabalhador e a defesa dos direitos dos usuários de saúde. Desde os tempos de Hipócrates que a medicina tem princípios que se mantém até hoje: “Sedare dolorem opus divinum est”. Aos doentes temos que ter por hábito duas coisas: ajudar e, se não puder ajudar, não produzir danos. Nosso grande professor Adib Jatene sempre usou e adaptou o aforismo de Hipócrates: “A função do médico é curar. Quando ele não pode curar, precisa aliviar. E quando ele não pode curar nem aliviar, precisa confortar”.
O médico e os profissionais de saúde precisam ser especialistas em gente. Lembrando um grande amigo, professor e escritor de nossa cidade, o querido Ruben Alves que dizia em seu livro “O Médico”: “Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito”. Assim, cada vez mais, existirá espaço e a necessidade de sempre ouvir os pacientes.
O Prof. Camargo JJ de Porto Alegre alerta que importante é lembrar os erros que por vezes cometemos: desaprendemos a ouvir, a desvalorização da semiologia, a insensibilidade da pressa, a não percepção do sofrimento do outro, a falta de empatia, não reconhecer que a doença é uma situação de fragilidade, a geração das certezas, suprimir o direito a negação, a antecipação do sofrimento, tratar pessoas mais simples como se elas fossem invisíveis, permitir que os pacientes sintam dor no hospital e ignorar os avanços tecnológicos. Em complemento, ressalta a necessidade de preservar a esperança, entender que o temor do abandono é maior que o medo da morte, reconhecer que a solidão é muito prevalente, não sublimar a sutileza do encaminhamento, contabilizar as manifestações de gratidão recebidas, entender o significado da doença para o paciente e saber que o primeiro remédio é o acolhimento.
Importante ainda é lembrar que os profissionais de saúde também têm suas limitações naturais aos seres humanos e a humanização da saúde destes profissionais também é fundamental.
Este tema tem sido alvo de publicações (2) e fica claro que humanismo é cada vez mais importante em um cenário de saúde em constante mudança. Somente quando cuidamos do médico e de toda a equipe de saúde, quando toda esta equipe está saudável, aí sim, podemos cuidar do paciente de maneira adequada.
Problemas como o burnout, depressão, ansiedade e, em nível extremo, o suicídio, têm sido cada vez mais observados e diagnosticados em profissionais da área da saúde. Todos podem imaginar como isto foi frequente durante a pandemia, mas que ainda nos acomete de modo permanente.
Conviver com a dor, o luto, a doença grave, etc. não é fácil mesmo para profissionais experientes e preparados. Este é o momento onde estamos vivenciando a humanidade de nosso trabalho e de nossas vidas.
1- Ferreira CP et al: Humanization and perception of effectiveness of Brazilian Health care system. Administração Pública e Gestão Social 2022.
(2)- Levin R et al: Humanism increasingly important in a changing health care landscape. AAMC, 2017.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Atual secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo.
Dirceu Ribeiro é professor titular do Departamento de Pediatria da FCM Unicamp