Teve início na última segunda-feira, dia 04 de abril, a décima oitava edição da maior mobilização realizada por povos indígenas de todo Brasil – o Acampamento Terra Livre, que tem como principal objetivo denunciar violências praticadas contra os povos originários e reivindicar a demarcação de territórios indígenas como meio de preservar a identidade, o modo de vida e o direito à sobrevivência de grupos que, há milhares de anos, levam uma vida diferente da imposta pelo modelo urbano-industrial que continua se globalizando de forma predatória pelo planeta todo.
Pode causar estranhamento, à princípio, que em pleno século XXI pessoas trajadas com indumentárias coloridas, cocares, chocalhos e pinturas no corpo à mostra se reúnam em frente à sede do governo federal, em Brasília, entoando cânticos enquanto, em passo sincronizado, se fazem visíveis diante de audiências que, por tanto tempo, aprenderam e ensinaram a associar os povos indígenas a atraso, fantasia ou inferioridade.
Quem acampa no coração do país-Brasil são herdeiros de gerações que, por milhares de anos, cultivaram as riquezas naturais que seguem sendo destruídas em nosso país. Sobreviventes de uma covarde tentativa de genocídio que deixou milhões de vítimas em séculos de escravidão, epidemias e perseguição; mas que somam mais de um milhão de cidadãos e cidadãs, parte de mais de 250 povos indígenas que mantêm vivas tradições e saberes de inestimável riqueza na diversidade histórico-cultural que ainda floresce, apesar da histórica opressão do invasor-colonizador.
Na contramão do que reivindicam os povos originários, a “marcha do progresso”, inicialmente imposta pela bíblia, pela coroa e pela espada no século XV, em Pindorama, a terra-dos-cocais, continua avançando, mordaz, sobre territórios convertidos à lógica produtivista da mercantilização da natureza, do tempo e da vida, induzindo a um pensamento que reduz a existência humana (e dos outros seres vivos) ao acúmulo de bens materiais, de títulos e de versões da história que parecem cada vez mais obsoletas, voláteis e insuficientes para curar o mal-estar desse autodeclarado ser humano “moderno”.
Equipadas com aparatos tecnológicos cada vez mais sofisticados, as “civilizações” informacionais do século XXI, que pretendem colonizar outros planetas e viajar pelas dimensões do tempo-espaço, se mostram incapazes de resolver problemas como a poluição das águas, dos solos e da atmosfera. O crescimento do agronegócio não reduz a fome; o consumismo não erradica a pobreza; as hiperexposição das redes sociais não favorece o diálogo. As armas de destruição em massa na disputa pelo poder expõem a hipocrisia dos “homens civilizados” em disputas protagonizadas por líderes de terno-e-gravata ou fardados, quase sempre tirânicos e perversos, acusando uns aos outros de serem selvagens, bárbaros, incivilizados.
Ignorando o chamado que nos fazem os povos das florestas (que também usam celulares, falam sobre moda, assistem novela, jogam futebol, debatem política e vão à igreja), mergulhamos cada vez mais fundo em crises causadas por desequilíbrios ecológicos e pelo distanciamento de nossa própria essência humana, que é parte da Natureza que alguns tentam negar, dominar ou destruir, buscando rotas de fuga até mesmo em mundos virtuais debilmente criados a partir de um egocentrismo vaidoso, infantil, que distorce o tamanho da humanidade diante do mundo.
Será que a luta dos povos indígenas pelo direito à existência em harmonia e equilíbrio com os ciclos da natureza não pode ao menos auxiliar na busca por caminhos diferentes desses que têm nos levado a becos sem saída de ansiedade, depressão, violência, autodestruição, solidão e tristeza?
E não se trata, aqui, de fantasiar o regresso a um passado utópico ou saudar realidades romantizadas que talvez nunca tenham existido, mas de perceber, a tempo, que pode ser a chave para a nossa sobrevivência aprender com os povos indígenas outras formas de resistência, de expressão e de existência no século XXI, dando novos usos e significados à vasta produção científica, tecnológica e cultural dos últimos quinhentos anos.
Ter a coragem para sermos radicalmente vivos, como ensina Ailton Krenak, e, ao invés de aceitar uma sobrevivência arrastada, sempre exaustos, correndo, dopados, despertar para a alegria e a responsabilidade de fazer parte de uma dança cósmica de seres e relações vivas que, embora passageiras, são o que há de mais valioso a ser desfrutado.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes, coordenador de expansão da TETO Brasil na RMC