Ao pensar na infância e na adolescência do século XXI, quase que instantaneamente nos vêm à mente crianças e adolescentes nascidos num mundo digital, teoricamente cheio de possibilidades, respostas e estímulos que possibilitam aos novos cidadãos e cidadãs do mundo compreender o universo e encontrar respostas para problemas sempre mais complexos e sofisticados de um mundo à beira de um iminente colapso ambiental, castigado por guerras e contrastes socioeconômicos.
Nos espaços de educação, muito se fala sobre as apostas de inteligências artificiais, dispositivos eletrônicos e soluções tecnológicas para superar problemas que há séculos são postergados por lideranças políticas e econômicas, a despeito dos alertas da comunidade científica e de povos originários. Muitos desses problemas têm, aliás, piorado gravemente.
A quase onipresença da tecnologia no dia-a-dia da juventude pode até ser vista como uma oportunidade de aprendizado e conexão.
Ferramentas educativas, jogos interativos e plataformas online anunciam ambientes propícios ao refinamento de habilidades cognitivas, raciocínio lógico e até mesmo a exploração de talentos criativos. Assim, a modernidade traria o potencial de ampliar horizontes, fornecendo acesso a informações diversificadas e criando oportunidades de aprendizado além das fronteiras físicas das salas de aula tradicionais.
A promessa de novas ferramentas, desenvolvimento de habilidades e capacidades na criação de pequenos gênios da computação e da informática segue sendo reafirmada, mas esconde, propositalmente, problemas sérios.
A exploração de crianças e adolescentes que passam horas imersas no ciberespaço, precocemente sugados pelas telas luminosas e plataformas virtuais que prometem desenvolver habilidades e competências, camufla a estratégia nefasta de coleta de dados e do uso de tempo, energia e inteligência de pessoas reais na programação de softwares alimentados pela interação coletiva de dezenas de milhões de usuários mediados por algoritmos de seleção de conteúdos e influência em padrões de comportamento.
O uso de influenciadores cada vez mais jovens nas plataformas de redes sociais (instagram, tik-tok, twitter, youtube) fortalece um ciclo de desconexão com os espaços físicos e relações de afeto e pertencimento, alienando-os através da dedicação obsessiva por engajamento, validação, recompensas e competição em ambientes virtuais, incitando, de maneira preocupante, crianças e jovens a produzir, reproduzir e disseminar conteúdos que, muitas vezes, sequer compreendem.
São pessoas vulneráveis que, desde os 4, 5 anos de vida, passam cinco, seis, dez, quinze horas grudadas nas telas, sem perceber que estão vendendo sua infância em troca de um status supérfluo de subcelebridade e de recompensas efêmeras para ostentar nas redes, perdendo o precioso tempo que passariam com suas famílias, com amigos e colegas, praticando esportes, brincando ao ar livre, construindo vínculos de confiança e cooperação, se alimentando e dormindo adequadamente, interagindo com o mundo real.
É fundamental para o desenvolvimento do ser humano, especialmente durante a infância, expor-se a situações imprevisíveis, que fogem do nosso controle, para estimular a espontaneidade, a criatividade, o pensamento lógico-dedutivo e a capacidade de reagir de forma racional-reflexiva frente ao desconhecido.
Ao invés disso, os nativos digitais têm se dedicado, sistematicamente, a rotinas repetitivas de simulações pré-programadas, criando hábitos de sedentarismo e desgaste das funções intelectuais progressivamente mais limitadas e reduzidas à busca pelas microrrecompensas imediatas que funcionam como validação às muitas horas dedicadas à busca por engajamento virtual através.
Importante reconhecer, certamente, que parte dos conteúdos produzidos e atividades realizadas em ambientes digitais cumprem propósitos educativos, têm finalidades culturais e podem reforçar mensagens saudáveis relacionadas ao desenvolvimento biopsicossocial de sujeitos em formação. Mesmo assim, quando somados a aplicativos de apostas online, joguinhos caça-níqueis, trends virais e campanhas de sensacionalismo e desinformação, sintetizam a matéria-prima informacional usada em estratégias de análise de tendências e interferência nos padrões comportamentais gerenciadas por políticos, empresários, especuladores e investidores do hiperlucrativo setor de tráfego de dados das big techs.
Nesse percurso, os pequenos abrem mão da verdadeira fruição da infância, do despertar das curiosidades, das descobertas sobre o corpo e as possibilidades de interação com o que está além de si, do encantamento diante da natureza e do universo – tudo isso asfixiado pela gamificação, espetacularização e desumanização das relações consigo mesmo, com outras pessoas e com o mundo.
Isso sem falar daqueles que, mesmo sem condições de acessar a internet e interagir com dispositivos que parecem ter vindo do futuro, são vítimas de trabalho análogo à escravidão em atividades ligadas à mineração, fabricação e comercialização dos produtos vendidos como o apogeu da liberdade e da felicidade através do consumismo; e das que são impactadas pelo desmatamento e pela poluição causados pela indústria tecnológica.
Há quem diga que vivemos realidades cada dia mais violentas e que as crianças precisam de ambientes seguros, protegidos, vigiados, controlados. O ciberespaço, certamente, não é esse espaço. Pelo menos não sem a criteriosa supervisão de adultos responsáveis capazes de filtrar conteúdos que levam à erotização do corpo e da expressão da infância, bem como a discursos fundamentalistas, de preconceito e ódio, e à padronização estética responsável pelo aumento de traumas e complexos ligados à aparência.
A mesma violência que justificaria o medo das ruas e de espaços públicos infiltra-se no ciberespaço. De fraudes, golpes com transações financeiras e ciberbullying à extorsão com vazamento de fotos íntimas e organização de atentados e massacres, estímulo ao suicídio e venda ilegal de armas e drogas, o mundo virtual expõe usuários e usuárias a todos os perigos do mundo real.
Não à toa, superpotências militares têm recorrido às guerras híbridas nos campos de batalha, assim como políticos extremistas e charlatões da indústria da doença, da fé e do medo.
A cínica esperança de que a aliança entre tecnologias inovadoras e capacidades criativas das novas gerações possa salvar a humanidade de si mesma num futuro limítrofe segue prorrogando soluções realistas e eficientes para problemas que nos afligem agora, no presente imediato, esse espaço-tempo onde a lógica destrutiva e autopredatória das políticas de exploração socioambiental e desigualdades econômicas permanecem determinando quem vive e quem morre. Ou quem sobrevive sustentando a presença fantasmagórica de simuladores virtuais de inteligência, marionetes digitais que não existem sem uma legião de ventríloquos seduzidos pela fantasia de colonizar e controlar dimensões que não existem fora das telas.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.