Em 2024, Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira (SSCF) comemora 100 anos de existência. Não é fácil em um país como o Brasil, particularmente na área da saúde, entidades tão longevas e modernas em seus conceitos e práticas. Falar sobre a história do Cândido é mostrar a evolução dos cuidados em Saúde Mental no município de Campinas e com suas influências e reflexos em todo o país.
Até 1924, os portadores de transtornos mentais ficavam confinados às delegacias da cidade.
Entendendo que era necessário um local adequado para que pudessem permanecer e ser cuidados, um grupo de filantropos da cidade doou terras de uma fazenda localizada no Distrito de Sousas e iniciaram a construção do que hoje é o Casarão, sede da instituição. Com a inauguração do “Hospital de Dementes” de Campinas, os pacientes foram transferidos para lá. Naquela época, o conceito de tratamento era sinônimo de isolamento. Dessa maneira, os doentes eram confinados às dependências do casarão, onde permaneciam muitas vezes pelo restante de suas vidas.
Hoje, essa lógica nos parece estranha e inaceitável, mas, se considerarmos o funcionamento social do início do século passado, oferecer asilo e tratamento gratuitos a portadores de transtornos mentais era vanguardista. Em 1990, quando foi iniciada a luta antimanicomial no país, em Campinas o movimento de desospitalização já se consolidava. Serviços de acompanhamento foram abertos fora das dependências da sede, famílias foram localizadas e em abril de 2000 foi fundado o Centro de Atenção Psicossocial “Estação”. As Residências Terapêuticas também foram organizadas, permitindo aos internos sem família residirem em casas da cidade, sob os cuidados de equipes que possibilitavam a reintegração dessas pessoas ao convívio social.
Os portadores de transtornos mentais, antes vistos como um grande bloco humano indiferenciado, passaram a ter suas vontades e necessidades individualizadas. Essa é a grande diferença entre o modelo asilar e o atual: a construção do Projeto Terapêutico Singular.
Cada indivíduo é entendido como um ser único, com vontades, desejos e necessidades próprias que são respeitados para a elaboração de uma linha de cuidado que envolve saúde, assistência social, educação, trabalho, lazer e moradia. Atualmente, o SSCF funciona, principalmente, através de um convênio com a Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, e administra 40 unidades, com 900 colaboradores e que atendem mensalmente em torno de 6000 usuários. São 10 serviços 24 horas, três deles voltados para usuários com problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas.
O Serviço Residencial Terapêutico conta com 21 residências de diversas complexidades que permitem a desinstitucionalização de pessoas antes moradoras de manicômios ou que viviam em situação de extrema vulnerabilidade. O trabalho é um elemento importante de inclusão social. Considerando a sua importância, desenvolveram-se os projetos de Geração de Renda, que na lógica da economia solidária promovem a formação profissional dos usuários e contam com unidades por todo o município de Campinas.
A oficina agrícola do Núcleo de Oficinas de Trabalho é responsável pela maior horta de orgânicos da cidade, com produtos de qualidade e preço acessível. Além do trabalho, a instituição em sua história sempre incluiu a cultura como um dos alicerces da reabilitação psicossocial. Atividades musicais e artísticas sempre foram parte do Projeto institucional. O Bloco “Unidos do Candinho”, tradicional no sábado pré-carnaval, sai às ruas de Sousas entoando marchinhas de carnaval e enredos compostos por usuários. No dia do Bloco, moradores de Sousas e Joaquim Egídio participam da festa, integrando o cortejo e cantando as músicas, num ambiente saudável em que famílias e crianças se divertem juntamente com usuários e equipes.
A comunidade de Sousas, mesmo na época asilar, convive harmonicamente com os usuários, entendendo suas particularidades sem discriminação e valorizando a instituição como um dispositivo potente no amparo aos portadores de transtornos mentais e suas famílias. O acesso à saúde sempre foi um dos cernes da instituição.
Acompanhando as diretrizes ministeriais, foi fundado em 2012 o “Consultório na Rua”, dispositivo que visa promover a saúde da população vulnerável. Além de atendimento médico e construção de linha de cuidado singular, ações de saúde são proporcionadas a população em situação de rua, profissionais do sexo e refugiados.
Para garantir a qualidade da assistência, são realizados programas de educação continuada aos colaboradores, de acordo com a sua atuação no serviço. Protocolos institucionais estão sendo estabelecidos para garantir a uniformidade do cuidado. A educação é vista como uma ferramenta para a formação de profissionais que valorizem o SUS na perspectiva da humanização. Anualmente, quatro residentes médicos de psiquiatria são formados, e os serviços do Candido Ferreira são campo de estágio de alunos de graduação e Residência de diversas áreas da Saúde.
O reconhecimento internacional do Cândido Ferreira ocorreu no relatório da OMS em 2020, que considerou a instituição um exemplo mundial a ser seguido no cuidado, reabilitação e inclusão social de portadores de transtornos mentais.
A grande missão do Cândido é o combate ao estigma ao transtorno mental, ainda presente em vários setores da sociedade. Através de diversas iniciativas, relacionadas a trabalho, lazer, educação é que se cumpre a missão de mostrar que a diferença não significa inferioridade, ao contrário, acrescenta e enriquece o convívio e os valores de uma sociedade.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.
Karina Diniz Oliveira é médica psiquiatra, docente do Departamento de Psiquiatria da FCM Unicamp e Superintendente do Serviço de Saúde Dr. Candido Ferreira