Prometi que este artigo seria sobre laicismo e laicidade do Estado. Perdoem-me se decepciono algum leitor mais afeto a abordagens acadêmicas, mas não são o nosso estilo. Trataremos sim desse tema, mas com o propósito trazer à reflexão um questionamento: uma lei civil pode legitimamente proibir o culto religioso?
Meditando sobre essa questão, vem-me à memória a história de São Tarcísio. Eram anos em que o Imperador Valeriano perseguia duramente os cristãos, que foram forçados a se encontrar secretamente em casas particulares ou, por vezes, também nas catacumbas, para celebrar a Santa Missa. Havia então o costume de levar a Eucaristia aos prisioneiros e doentes, atividade que se tornava cada vez mais perigosa. Certa vez, esse rapaz de cerca de 12 anos pediu para que lhe fosse confiado esse encargo. O resultado é que acabou descoberto e morreu mártir.
Não pretendemos com isso simplesmente fazer uma comparação entre a situação que vivenciamos atualmente e aquela que trouxe o jovem santo ao martírio, sob a perseguição do Império Romano. As restrições ao culto atualmente têm como motivo a preservação da vida contra o risco grave e real de contágio com uma doença que tem ceifado milhares de vidas humanas.
Aliás, é obrigação do cristão, que decorre do quinto mandamento, esmerar-se nas ações que lhe cabem para proteger a própria vida e a dos demais.
Penso que o equilíbrio, proporcionado pela virtude da prudência, depende de ponderar os riscos em função dos benefícios que cada atividade proporciona. E isso em tudo, não somente nos tempos de pandemia. Por exemplo, fazer uma viagem de carro ou de avião implica riscos. Mas esses são assumidos, com todas as cautelas possíveis, para realizar um trabalho profissional, visitar um parente etc. Por outro lado, não é razoável arriscar-se a correr sobre um parapeito de um alto edifício ou participar de uma racha de veículos numa avenida. Enfim, a nobreza dos fins justifica – ou não – os riscos que se corre para alcançá-los.
Compete ao Estado fundamentalmente promover o bem comum. Para isso cabe-lhe regular as ações humanas guiado – espera-se – pela prudência. Mas na definição do que é o bem comum e, por consequência, nos meios que se utiliza para a sua persecução é que o laicismo tem trazido graves e nefastas consequências.
Com efeito, se por um lado é certo que a educação, a saúde e a segurança se inserem nesse conceito, valores como a fé e a liberdade religiosa não são tão estimados por muitos governantes.
E a situação atual de pandemia contribui para deixar isso mais evidente. Com efeito, a compra de alimentos num supermercado é considerada essencial, de modo que se há de assegurar tal atividade, ou seja, justifica o risco que isso implica. Já o alimento espiritual que se proporciona numa celebração religiosa, por outro lado, é dispensável, de modo que pode esperar. Por quê? Porque vivemos num estado laico, dir-se-á talvez.
Acontece que laicidade do Estado não é ateísmo oficial. Aliás, muito esclarecedor disso é preâmbulo da nossa Constituição: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte (…) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
Ora, se o legislador constituinte invoca expressamente a proteção de Deus ao nos conceder a Constituição, não é razoável que quem a lê ou interpreta queira arrancar-Lhe da vida das pessoas, ou relegá-Lo a uma dimensão estritamente privada.
A fé como alimento espiritual deveria ser tratada como algo tão essencial como o próprio alimento material. Quando os governantes não respeitam esse direito natural, não promovem o bem comum. E então se instaura um ambiente propício para que surjam mais são Tarcísios, em pleno Século 21.
Fábio Henrique Prado de Toledo, casado com a Andréa Toledo, pai de 11 filhos e avô de 2 netas. Moderador em cursos de orientação familiar do Instituto Brasileiro da Família – IBF. Especialista em Matrimônio e Educação Familiar pela Universitat Internacional de Catalunya – UIC, é Juiz de Direito em Campinas. Site: www.familiaeeducação.com.br. E-mail: [email protected]