Quando se está em cuidados de si mesmo, sempre é bom lembrar de quem está próximo. Cuidar de si é se preocupar com amigos, filhos, parentes, com as senhorinhas do prédio, do gari que recolhe toda a nossa sujeira, e, principalmente, com quem anoitecemos e amanhecemos.
E assim trato de andar pelas calçadas observando os buracos, os desvãos do meio-fio, e, é claro, os fios que caem dos postes. Não tem sido fácil a vida de quem gosta de andar pela cidade. E muito menos de quem buzina pelas avenidas. Mas a gente segue em frente e é também importante parar de reclamar do barulho do trânsito.
Durante anos cantei em bares do Brasil. Banquinho e um violão. Eu cantava e o povo do bar falava alto. Eu apenas cantava e tocava a vida pra frente. Hoje consigo conviver com o barulho da cidade. E até da televisão. O som está em mim e apenas ouço as palavras dos grandes compositores que andei interpretando pela vida. E assim ganhei um dinheiro para seguir em frente, cuidar da família, dos amigos, e de um cara que mora dentro de mim. E esse cara não tem nome e nem sei onde mora. Ele vive dentro da minha cabeça, zanza pra lá, zanza pra cá, e fica dando pitacos nas coisas que faço. A minha psicanalista diz que sempre é bom a gente pensar nas coisas que fizemos e vamos fazer.
E desde a pandemia resolvi não fazer nada. Absolutamente nada. Houve motivo pra tanto, uma demissão de emprego de dezenas de anos, sem aviso prévio, sem pagamento, sem consideração. Agora já estou mais ajambrado com a situação e apenas converso comigo mesmo.
É uma prosa meio besta, meio sem sentido, mas ainda sou um bom companheiro de mim mesmo. E a gente se conversa e fica admirando as árvores do Bosque dos Jequitibás, dos motociclistas com a sua pressa habitual, das buzinas, dos sustos que levam, do meu assustado pensar em suas famílias, em seus amigos, no derrapar da moto, do capacete no meio-fio, da dor que sentimos todos nós quando o fato nos é contado, em detalhes, nos jornais, rádios e tevês. E mesmo assim devo seguir em frente, olhar o ninho dos pássaros, olhar o céu e pedir um pouco de chuva.
Gosto de andar sob a chuva. Gosto das poças e dos grossos pingos que caem das folhas das árvores. Água seca. E o melhor de tudo é que a memória fica ensopada de uma certa infância que levei no Taquaral, chuva caindo e a molecada jogando bola. Naquele tempo não tinha política e nem tempo pra pensar no que teríamos de fazer da nossa vida. E até hoje não penso no que vou fazer da minha vida de aposentado. Apenas levo umas broncas da moça-que-manda-em-mim e largo o livreto de palavras cruzadas.
Jair Bolsonaro está livre por aí. Leva bronca e dá de ombros. Não faz café, não esquenta a comida que come, não paga cafezinho e sequer passa uma vassoura na sua vida. Ele apenas segue a vontade do poder. E nem isso ele faz direito. E as estantes da História aguardam o pó de mais uma vida desperdiçada em nome da ignorância política, da vida, de si mesmo. É isso: Bolsonaro é uma entidade que não consegue se reconhecer, e que jamais vai baixar em algum terreiro.
Eu sigo como posso a minha vida. Trato de escrever algumas coisas e aguardo notícias de mim mesmo. Ando precisado de saber como estou. E assim ando que ando pelas ruas do bosque. As pedras me reconhecem e abrem caminho. E eu as agradeço pela gentileza. E assim volto pra casa com a alma lavada de uma esverdeada garoa. E orando para que os deserdados da fé encontrem seu caminho. E assim abro a porta do apartamento e os meus braços para um aperto na minha amada moça. E assim a vida segue e mais uma tarde me aguarda com as suas memórias.