A ficha demorou a cair. Quando o prefeito de Campinas Jonas Donizette anunciou no final de 2016 a pessoa que ocuparia a liderança da então Secretaria Municipal de Direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida, a própria nomeada não acreditou. A decisão foi histórica para Campinas. Pela primeira vez uma mulher negra assumia a frente de uma secretaria da municipalidade.
Seis anos depois, Eliane Jocelaine Pereira segue como personagem inspiradora na Prefeitura e garante: com a motivação ainda maior na luta por uma sociedade mais justa.
Atualmente, Eliane é secretária de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas na administração Dário Saadi, com uma trajetória marcada por ações intensas contra a discriminação e na construção de políticas públicas voltadas às minorias. No entanto, desde março, tem aparecido pouco no Palácio dos Jequitibás. Ela descobriu no início do ano que é portadora de duas doenças autoimunes incuráveis: a Síndrome Antissintetase (SAS) e a Síndrome de Sjögren. A nova realidade, por outro lado, lhe impõe desafios.
Em meio às dificuldades para andar e respirar e os tratamentos com quimioterapia, a servidora pública trabalha em casa movida por uma inspiração.
As síndromes que afetam os pulmões e a musculatura também trabalham em sua alma. E o que poderiam paralisá-la, a impulsionam a produzir. “Vejo esse momento como uma lembrança para não deixar a luta de lado”, diz.
Eliane justifica sua conduta ao fato de as doenças autoimunes nos negros também poderem ser resultado da desigualdade social. “Em função de uma história de vivência em ambientes insalubres e falta de cuidado, o negro carrega uma propensão genética alta para as síndromes. O ciclo de sofrimento está no nosso DNA e isso é manifestado”, explica. “Hoje, eu tenho plano de saúde e recursos para me tratar. Mas há muitos que não têm. São nesses que eu penso para seguir e renovar minhas energias.”
As dificuldades físicas causadas pelos sintomas, aliás, nem se comparam com as que Eliane vivenciou e ainda vivencia na alma em função da cor de sua pele. Ela conta que ainda há muito campo a percorrer na luta por igualdade de direitos, mas ressalta que na sua infância a situação era bem pior. “Nos anos de 1980, as pessoas achavam que tinham permissão para agredir”, lembra, ressaltando que o apoio da família foi fundamental para não se deixar abater. “A figura da minha avó era centralizadora e havia um apoio dos meus pais. Sou fruto de mulheres que trabalharam como empregadas domésticas e de um pai que veio da roça, sem estudo. Vivíamos em dificuldade, mas minha família nunca deixou faltar nada em casa e fez o possível para que eu pudesse estudar.”
Para Eliane, essa referência familiar faz falta entre os jovens negros na atualidade. Por isso, considera a necessidade de fortalecimento das comunidades, os chamados “quilombos urbanos”, como fundamentais no combate às desigualdades.
Campineira, Eliane Jocelaine Pereira cresceu na periferia. Da Vila Boa Vista, se mudou à região do Ouro Verde.
Influenciada pelas tias que sempre ressaltaram a importância do conhecimento, a menina fez questão de se dedicar aos estudos. Hoje, é formada em Direito pela Universidade Paulista (Unip), com especialização em violência doméstica. É também Líder Executiva em Desenvolvimento pela Primeira Infância – NCPI Harvard. Nesta quarta-feira (12), dois dias antes do aniversário de Campinas, completa 43 anos de idade.
“Campinas, normalmente, é vista de forma negativa por ter um legado forte voltado à escravidão. Mas foi justamente essa condição que contribuiu para o surgimento de ações afirmativas nas lutas contra o racismo. Hoje, a cidade está na vanguarda da resistência e temos a responsabilidade de carregar e passar esse bastão para as futuras gerações”, comenta a campineira, também autora do livro “Eu Não Vou Perturbar Sua Paz – Dialética sobre Cultura de Paz e Altruísmo”.
Eliane conta que sempre se envolveu com causas sociais desde seus primeiros passos como servidora da Prefeitura, em 1998. “Foi a oportunidade que encontrei de poder lutar contra as situações que vivenciei e tentar contribuir com mudança”, esclarece. Mas nem mesmo o fato de ter sido assessora da secretária de Cidadania, Assistência e Inclusão Social, Jane Valente, em 2014, a fazia acreditar que poderia chegar a assumir uma pasta. “Para mim era uma situação muito distante, pois nunca havia assumido uma posição política. Minha filosofia foi sempre trabalhar.” E quando foi nomeada, a surpresa veio junto com a satisfação.
“Foi uma recompensa pelo meu trabalho e seriedade como servidora pública.”
Na condição de secretária da Prefeitura, foi alvo também do racismo estrutural, sendo muitas vezes proibida de entrar em eventos ou direcionada ao elevador de serviço. E àqueles que duvidavam da posição que ocupava, respondia com uma provocação à reflexão. “Sempre que me perguntavam: ‘mas você é a secretária?’ Respondia com outra pergunta: ‘mas por que não seria?
Hoje, uma das conquistas que celebra é a possibilidade de poder desfrutar da convivência dos filhos. Solteira, Eliane é mãe de Karen, de 22 anos, Léia, de 18, e Daniel, de 13, todos adotivos. Sobre o futuro, essa campineira deseja se aperfeiçoar cada vez mais como servidora pública para poder fazer a diferença na cidade que carrega no coração.