“Dois e dois podem ser quatro ou 22”. Electra Wilma Mariolani faz a citação para explicar que nem a ciência exata escapa à interpretação, assim como ocorre com a vida. Aos 84 anos, a professora da EMEF Francisco Silva Padre, na Vila Castelo Branco, em Campinas, revela a preferência pela matemática, ainda que a lógica nunca tenha prevalecido enquanto construía seus 66 anos de carreira na educação. A orientadora deu luz própria ao significado do magistério. Interpretou os muitos atos da profissão como sempre quis, ao lado das crianças que o ensino colocou em seu caminho.
À frente de seu tempo, Dona Wilma, como é mais conhecida, fez dos alunos os filhos que não teve. Entrou para a escola quando o mundo conhecia a Segunda Guerra Mundial. Se adaptou a incontáveis reformas ortográficas e de ensino. Somou tempo para se aposentar na Rede Estadual e depois acumular outros quase 30 anos de Rede Municipal. Atravessou uma impensável pandemia e viveu inéditos tempos de ensino remoto. E segue incansável, aos 84 anos, na profissão que escolheu.
“Campinas é a cidade mais importante para mim, porque tudo que realizei foi aqui. Nunca tive intenção de sair de onde nasci e me criei. Me fiz em Campinas, construí minha felicidade aqui”, reforça a educadora.
Nascida e criada na Vila Industrial, a animada Dona Wilma representa um pedaço precioso das pessoas que constroem Campinas. Responde pela educação nas salas de aula, espaço que aprendeu a gostar desde menina. Aluna aplicada, transformou os elogios que recebia de outras professoras – e os conselhos para seguir no magistério – no norte de um propósito. Até os dias de hoje, se apega a ele na rotina diária da escola municipal.
“O magistério é tudo para mim. Nós, educadores, não tocamos somente a vida das crianças, temos participação também nas famílias delas, no presente de todos eles e no futuro de gerações”, poetisa.
O incomum nome Electra, explica, pode ter sido presságio das destinações atípicas que a vida lhe guardava àquela época. Quando nasceu, em 6 de novembro de 1937, seus pais talvez tenham se inspirado numa protagonista da mitologia grega a quem a história atribui diferentes narrativas. Ou então no nome da filha de um conhecido, como se diverte ao contar. “Eu prefiro acreditar que meus pais escolheram Electra por conta da mitologia grega, mas pode ser também porque gostaram do nome da vizinha”.
O começo
As paralelas de Electra Wilma com a educação levam ao ano de 1955, quando se formou após passar pelo Colégio Sagrado Coração de Jesus, a primeira escola católica de Campinas. Se especializou no Instituto de Educação “Carlos Gomes”, antiga “Escola Normal”, berço das futuras professoras do município na metade do século passado. Fez especialização com Norberto de Souza Pinto, um pioneiro do ensino de pessoas com deficiência mental em Campinas.
“Com 18 anos eu já estava em Valinhos dando aula e fazendo curso com o Norberto de Souza Pinto, um grande intelectual da educação, na Escola Normal. Fiquei cinco anos em Valinhos e depois ingressei em escolas para pessoas com deficiência mental de Pedreira e Amparo, sempre na rede estadual”, recorda.
Cansada das viagens de trem para Valinhos, Pedreira e Amparo, Dona Wilma voltou para Campinas epassou por algumas escolas estaduais, até chegar à Felipe Cantúsio, no Parque Industrial, onde, além de ensinar, também ocupou cargos em associações durante os mais de dez anos na instituição. Lá se aposentou pelo estado, quando já trabalhava como professora substituta na rede municipal de Campinas.
“Sempre cumpri minha obrigação com amor e dedicação. Eu não tinha falta, sobravam folgas ao final do ano”, se orgulha.
Foram mais de 30 anos de trabalho no Estado, e na rede municipal está perto de completar outros 30 anos de serviços, somados os tempos como substituta e concursada.
Atualmente, responde pelo reforço escolar de alunos do terceiro e quarto anos da EMEF Francisco Silva Padre, dentro do programa de recuperação escolar pós-pandemia. “Ajudo a reforçar a educação desses alunos para que consigam passar de ano de maneira bem saudável e vitoriosa”, explica.
Jeito de trabalhar
O jeito carinhoso com as crianças e a receptividade dos alunos têm origem da mistura de passado e presente. “O meu processo de ensino é mesclado com o moderno, mas enraizado no processo antigo, onde a criança entendia que dois e dois nem sempre é 22. Pode ser quatro. Nós temos que viver a época do jovem, mas há coisas boas do ensino antigo. Nunca parei de me especializar, tenho pós-graduação, é preciso acompanhar o tempo”, ensina.
Antes de iniciar o trabalho de reforço escolar, Dona Wilma fez uma das coisas que mais gosta na educação: conhecer os seus alunos e suas famílias. Conversou individualmente para saber mais de cada um deles.
“Fiz as entrevistas com as crianças com quem iria trabalhar para que elas pudessem desabafar, falar o que queriam. É preciso conhecer a vida delas para poder ajudar. Algumas crianças têm problemas em casa, temos de conhecer sua vida para trabalhar o todo do aluno”.
Lições
Quase seis décadas de magistério mostraram à Dona Wilma que o ensino de qualidade se inicia muito antes do ingresso da criança na escola. “A educação começa na trajetória do dia a dia do povo brasileiro. O meio ambiente interfere. Se a família for boa, se der assistência para ajudar em casa, se a alimentação for boa, o resultado será melhor.”
E sobre as transformações da educação ao longo dos tempos, há aspectos que não agradaram à professora. “Houve muitas mudanças na educação na forma como ensinar. Na minha opinião, a promoção automática de ano prejudicou. Quando comecei, nós decidíamos se o aluno passaria ou não de ano, com base no que ele sabia. Não culpo ninguém por essa regra, tentaram melhorar, mas os alunos não desenvolvem a capacidade que poderiam ter. Sou a favor de exigir um pouco mais.”
Futuro
Dona de opiniões firmes, a educadora não aparenta a mesma solidez quando fala do futuro no ensino. A possibilidade de aposentadoria já foi postergada algumas vezes – a última delas recentemente. O novo prazo para se despedir das salas de aula foi fixado para o final deste ano. Será?
“Fiz uma ideia de parar no meio do ano agora. Aí pensei: tenho de ir até o final do ano trabalhando com essas crianças para ver o resultado delas, o que conseguiram. Então, me deu vontade de continuar até o final do ano”, assegura, para depois reafirmar. “Este é o último trabalho que me proponho a fazer, essa escola está marcada na minha história”.
É difícil saber se Dona Wilma irá aquietar-se ao final do longo ciclo na educação. A aposentadoria, no momento, ainda é motivo de deboche. “O que vou fazer quando parar? É uma boa pergunta, não sei, talvez vou ser um zero à esquerda”, se diverte, revelando depois a vontade de se tornar uma empreendedora na administração dos bens que possui. “Tudo é possível”, avisa. E não dá para duvidar de Dona Wilma.
CONFIRA O ESPECIAL COMPLETO NO LINK ABAIXO