Neste 2024 em que Campinas celebra os seus 250 anos, mais uma data importante precisa ser muito comemorada, a do centenário do Serviço de Saúde Dr.Cândido Ferreira, lembrado no último dia 14 de abril. Uma instituição chegar aos 100 anos já é um motivo suficiente para festejar, em um país com as dificuldades e incertezas como o Brasil, mas no caso do Cândido Ferreira as razões para exaltar o fato são múltiplas.
Em primeiro lugar, porque são consistentes e estabelecidas as raízes comunitárias da instituição, que nasceu em 1924 como fruto de uma intensa mobilização popular, com ativa participação da imprensa da época. Desde então, os vínculos com a comunidade foram se consolidando, como um dos exemplos da vocação solidária de Campinas.
Nos anos 1980 e 1990, o Cândido se projetou em termos nacionais e internacionais, por ter sido um dos protagonistas da reforma psiquiátrica no Brasil. As sementes de um novo formato de terapia para os pacientes em saúde mental foram lançadas na Itália, na década de 1960, com as experiências pioneiras em Trieste e Gorizia, lideradas por Franco Basaglia.
No Brasil as ideias de Basaglia ganharam cada vez mais adeptos, inconformados com situações como a do Centro Psiquiátrico de Barbacena (MG), que funcionou até 1996 e que foi classificada como a do “Holocausto Brasileiro”, nos termos do título homônimo de livro da jornalista Daniela Arbex, de 2013.
Na década de 1970, uma das iniciativas relevantes no movimento foi a constituição da Rede de Alternativas à Psiquiatria, com a participação de vários profissionais que chegaram a ter aulas, entre outros, com o francês Michel Foucault, autor de vários livros com duras críticas ao modelo histórico de institucionalização em psiquiatria. Em um dos momentos em que esteve no Brasil, para algumas dessas aulas, Foucault chegou a participar do lendário ato ecumênico pela memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-CODI em São Paulo a 25 de outubro de 1975.
O movimento por uma reforma psiquiátrica no Brasil foi então se fortalecendo e o Cândido Ferreira foi uma das instituições pioneiras em reformas no modelo tradicional de tratamento.
Algumas iniciativas na década de 1990, como a Casa Primavera, contribuíram para alimentar o movimento que levou à aprovação, em 2001, da Lei Federal 10.216, dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionando o modelo assistencial em saúde mental. O novo arcabouço legal recebeu o nome de Lei Paulo Delgado, assim conhecida em homenagem ao autor do projeto inicial que tramitou no Congresso Nacional, desde 1989.
Por influência do trabalho do Cândido Ferreira, e com o apoio de gestores públicos, Campinas se firmou como um exemplo nacional de aplicação do novo modelo de saúde mental brasileiro, fundamentado na descentralização de serviços, na desinstitucionalização e na abordagem humanitária, respeitadora da dignidade dos pacientes, além da ampla participação comunitária nos serviços oferecidos.
Com isso a cidade se credenciou, pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS), como um modelo global de política pública em saúde mental, por prescindir de hospital psiquiátrico e implementar ações fundamentadas no respeito integral aos direitos humanos.
O destaque foi registrado no documento “Guia sobre serviços comunitários de saúde mental – Promovendo abordagens centradas na pessoa e baseadas em direitos” (“Guidance on community mental health services: Promoting person-centred and rights-based approaches“), lançado pela OMS em junho de 2021, justamente no momento em que a temática da saúde mental alcançou maior dimensão em função do confinamento e outras medidas restritivas impostas pela pandemia de Covid-19.
Campinas é citada como modelo no Capítulo 4 do Guia, que trata das “Redes abrangentes de serviços de saúde mental”, e especificamente no subcapítulo sobre “Redes de saúde mental bem estabelecidas”.
O Guia da OMS evidencia que Campinas, um município brasileiro do Estado de São Paulo, “oferece um modelo de como isso funciona em nível local, onde todos os serviços são prestados por meio desse modelo, seguindo o fechamento do hospital psiquiátrico da cidade em 2017″.
No caso, se refere ao Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, um dos pioneiros e principais protagonistas da reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil. O Cândido Ferreira é parceiro do município na rede de saúde mental de Campinas, com funcionários atuando e gerindo Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e outras unidades da rede no município.
O Guia da OMS inclui no final, como referência para a busca de novas informações, por interessados de todo o mundo, endereços virtuais de órgãos e instituições que trabalham com a saúde mental no Brasil e especificamente em Campinas, como a Secretaria Municipal de Saúde e o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira. Outra referência é um vídeo no Youtube sobre o Programa Maluco Beleza, produzido por usuários do Cândido Ferreira.
Em síntese, o Cândido é um grande orgulho para Campinas, sendo uma instituição que ousou pensar e praticar a liberdade, o respeito aos direitos humanos, à cidadania integral.
Mais um emblema da cidade que brilha quando é corajosa, não teme construir novos caminhos civilizatórios.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]