Uma das indagações centrais no mundo contemporâneo é essa: se a humanidade alcança a cada dia importantes avanços científicos e tecnológicos, como se verificou recentemente com a vacina em tempo recorde para o combate à Covid-19, por que o planeta passa por uma crise socioambiental inédita, que ameaça a própria civilização como conhecemos?
A questão é naturalmente complexa, ela inquieta há muito um número importante de pesquisadores e ambientalistas, mas uma das possíveis respostas a essa pergunta vital é que houve, ao longo da Revolução Industrial, a separação entre Cultura e Natureza.
A Cultura, entendida como a forma que as pessoas relacionam entre si, produzem e se expressam, se tornou superior à Natureza. A Natureza seria algo a ser apenas dominado e transformado, em benefício da humanidade.
Outro elemento que estaria na raiz da crise socioambiental contemporânea é a divisão de saberes. O conhecimento foi fragmentado. Uma especialidade não “conversa” com outra. Cada uma seria autossuficiente por si mesma. Enfim, se perdeu a noção do todo, da relação entre as espécies, entre os recursos naturais, os ecossistemas.
Pois justamente nesse cenário há um exemplo histórico em Campinas, de que é possível e necessário um diálogo e uma interação permanente entre saberes, entre linguagens. O exemplo foi dado pelo Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), organização criada em 1901 por um grupo de intelectuais que se encontrava regularmente no Largo do Rosário.
Liderados pelo advogado César Bierrenbach, aqueles intelectuais tiveram a percepção da urgência de se unir Ciência, Cultura e as diferentes linguagens artísticas.
O século 20 estava começando, a Modernidade se esboçando com a velocidade das ferrovias, dos primeiros automóveis e do cinema, então recém-inventado, as descobertas de Freud sobre o inconsciente abalavam crenças e convicções historicamente sedimentadas.
O grupo liderado por Bierrenbach percebeu então como era importante um diálogo, e não a separação, na esfera do conhecimento. E daí nasceu o Centro de Ciências, Letras e Artes, fundado a 31 de outubro de 1901. Logo em seguida foram constituídas comissões de assuntos científicos, formadas por cientistas e pesquisadores, muitos ligados ao Instituto Agronômico, mas também a instituições como o Colégio Culto à Ciência.
A Comissão de Botânica, por exemplo, era formada por José de Campos Novaes, membro da Linnean Society de Londres; Francisco de Paula Magalhães Gomes, catedrático de História Natural do Ginásio de Campinas; e Camillo Vanzolini, professor de História Natural. Já a Comissão de Agricultura e Zootecnia era integrada por Gustavo D´Ultra, diretor do Instituto Agronômico; João Pedro Cardoso, inspetor do 2º Distrito Agrícola do Estado de São Paulo; Abelardo Pompeu do Amaral, doutor em Ciências Físicas e Químicas pela Escola de Genebra.
Um ano depois já nascia a Revista do Centro de Ciências, Letras e Artes e foi justamente João Pedro Cardoso que assinou o artigo principal da publicação, que era dedicada à “Devastação das Matas”.
Sim, o Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas foi pioneiro na denúncia sobre a destruição de florestas no estado de São Paulo, no caso, da Mata Atlântica que originalmente cobria grande parte do território paulista.
Era fruto da visão integral que a instituição propunha, não separando Ciência, Cultura e Artes. Com essa visão, o Centro de Ciências, Letras e Artes foi o grande protagonista dos principais debates artísticos e culturais da cidade na primeira metade do século 20. A organização sediou, por exemplo, uma das primeiras exposições futuristas no Brasil, de Lasar Segall. Cinema, teatro, música. Todas as linguagens foram contempladas pelo Centro.
Infelizmente essa visão integral, que hoje se diria holística, proposta e praticada pela organização campineira foi se perdendo na segunda metade do século 20. O resultado foi a emergência do que se chama hoje de Antropoceno, a total dominação da natureza pelo ser humano, com as consequências conhecidas.
Mas o legado histórico do Centro de Ciências, Letras e Artes está aí. Mais um exemplo de que Campinas brilha quando é corajosa, é ousada. Uma inspiração nesse momento em que a cidade está próxima de completar 250 anos.
Campinas deveria olhar com mais atenção para o seu patrimônio cultural, material e imaterial. Essa é uma das premissas da sustentabilidade vista de forma ampla. A alma de Campinas quer continuar vibrando e provocando transformações.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]