Na mesma semana em que o presidente do Brasil comemorou o massacre de 25 pessoas na Vila Cruzeiro, que fica no Complexo da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, um jovem de 18 anos assassinou a sangue frio 21 pessoas em uma escola na cidade de Uvalde, Texas, com fuzis comprados em uma loja dias antes. De acordo com o estudo “The Gun Violence Archive”, esse é o 212º massacre com armas de fogo nos Estados Unidos só em 2022. Na semana passada, vítimas da violência econômica, ao menos 6 pessoas em situação de rua morreram de frio na Capital paulista, onde há mais de 40 mil nessa situação (desempregados, desabrigados, famintos) segundo a Pastoral do Povo de Rua e o Movimento Nacional da População em Situação de Rua.
A violência nas maiores capitais do Brasil, infelizmente, longe de ser novidade, também já virou rotina. Mais de 11.500 famílias foram despejadas em SP e RJ durante a pandemia. Em 2021, além da execução de 29 pessoas no massacre do Jacarezinho, cerca de 6.500 foram mortas em ações militares, incluindo 183 policiais, de acordo com dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A quem insiste em usar os EUA como exemplo de “liberdade” ou “segurança” por conta do acesso facilitado a armas de fogo, vale destacar que o país ostenta 89 armas, em média, para cada 100 habitantes, segundo a Pew Research Center, sendo que 48% dos homens brancos do país têm arma e 41% dos armados não têm Ensino Superior. Segundo levantamento feito pelo jornal The Washington Post, em 2017 houve 34 assassinatos de pessoas inocentes para cada criminoso morto em legítima defesa no país.
Apesar da violência cada vez mais normalizada, EUA e Brasil se destacam no cenário mundial como países com populações carcerárias enormes, atrás apenas da China (que possui 1,4 bilhão de habitantes), abordagem que não consegue controlar ou sequer reduzir a presença tão nociva do narcotráfico e das milícias que aterrorizam principalmente as pessoas mais pobres que vivem em regiões marginalizadas, com frequência invisibilizadas pela grande imprensa e pelo deus-mercado.
Quando a criminalidade transborda para os bairros elitizados e espaços frequentados por pessoas de maior poder aquisitivo, tratar os sintomas não resolve as causas da doença.
No Japão, por exemplo, onde as leis e a fiscalização sobre armamento são extremamente rigorosas, o número de homicídios por arma de fogo no país foi de 3 pessoas no ano de 2017. Em 2015, a polícia japonesa fez apenas 5 disparos com arma de fogo – nenhum deles letal, de acordo com informações oficiais do governo japonês.
Pensando em outros exemplos, pode ser citado o fechamento de 24 prisões na Holanda, em 2017, e mais 19 em 2019, por falta de prisioneiros em um país onde não existe pena de morte.
Anos antes, a Suécia dobrou os investimentos em democratização da educação e geração de empregos em bairros periféricos e vem colhendo resultados simulares: mais pessoas com mão-de-obra qualificada e salários dignos, menos crimes, armas e pessoas encarceradas.
Na Noruega, os presídios também investem em educação e profissionalização, fazendo com que os índices de reabilitação de detentos sejam superiores a 80%, com relatos extremamente raros de tortura ou assédio contra pessoas encarceradas e, menos ainda, massacres em operações policiais ou ataques de pessoas armadas em escolas ou locais públicos.
Em países como França, Islândia, Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Canadá e Nova Zelândia o porte de armas passa por uma série de exigências e restrições, sendo que a pena por porte ilegal, em algumas situações, pode ser maior do que para furtos, por exemplo. A premissa é simples: roubam sua carteira, e isso é crime, mas ninguém será assassinado por isso – nem o infrator, nem a vítima, nem o policial. Nesses países, o enfrentamento ao narcotráfico também é muito diferente da “guerra às drogas” que, na América Latina, corrompeu-se há muito tempo numa guerra cruel e covarde contra a juventude pobre, preta e periférica.
Na Ucrânia, o levante popular de “cidadãos-de-bem-contra-o-comunismo” em 2014 afundou o país em uma crise política e econômica devastadora, hoje representada pela insurgência de grupos neonazistas em meio ao intervencionismo militarizado da Rússia e da OTAN – destrutivo para o povo ucraniano, lucrativo para especuladores da indústria da guerra.
No Afeganistão, após 20 anos de ocupação militar dos EUA, o Talibã voltou ao poder semanas depois da retirada das tropas que deixaram um rastro de sangue e pólvora com mais de 200 mil mortos e US$ 2trilhões de gastos com guerra. Incluindo Irã, Iraque e Síria, o número de mortes desde 2001 passa de um milhão e os gastos somam mais de US$ 8 trilhões, de acordo com a pesquisa “Costs of War”, realizada pela Brown University.
O terrorismo, todavia, segue cooptando jovens em países assolados por guerras e que, sem perspectivas de um futuro com dignidade e qualidade de vida, se rendem ao fundamentalismo religioso armamentista pautado pela intolerância, pela ignorância, pelo ódio.
A chave para enfrentar a violência não está no uso indiscriminado de armas de fogo.
Mas em políticas públicas que garantam redução da desigualdade social, do analfabetismo, da exploração econômica, da segregação espacial, garantindo acesso a direitos básicos e uma vida digna a todas as pessoas, como forma eficaz e preventiva de combater as guerras, o terrorismo, a criminalidade, ao invés de fomentar a violência numa falsa ideia de que medo, punições e poder de fogo podem ser o caminho para a paz e a justiça.
Mudar essa perspectiva requer que a população abdique da agressividade irracional e reflita de forma mais consciente sobre as relações entre pobreza, desigualdade, criminalidade, armas de fogo, guerras e violência.
Se, seguindo a linha de pensamento de Thomas Hobbes, assumirmos que o ser humano é, por natureza, essencialmente “mau”, que sentido faria supor que ter armas de fogo ao seu alcance ajudaria a conter um suposto instinto predatório, individualista e egoísta? De forma oposta, ao concordar com Rousseau e a suposta benevolência inerente ao ser humano, os exemplos de países menos violentos e socialmente mais desenvolvidos, menos desiguais, menos armados e mais preocupados com o bem-estar inclusive dos mais pobres se mostram promissores.
Ainda: numa perspectiva mais fatalista, pressupondo a completa falência do Estado, é preciso perguntar: na universalização do famigerado direito à “legítima defesa” e à “liberdade individual”, seria concedido, também, o acesso a armas de fogo a povos indígenas que seguem sendo exterminados por jagunços a mando de coronéis ruralistas? Ou aos pequenos produtores e camponeses massacrados pelo agronegócio? Ou às mulheres vítimas de violência doméstica? Ou a pessoas homo/transexuais perseguidas pelo preconceito e pela intolerância? A trabalhadores e trabalhadoras que vivem em periferias, tantas vezes açoitados por milicianos que, desonrando a farda que vestem, abusam do poder e da autoridade?
Ou se trata apenas de armar pessoas que querem conservar seus privilégios e dar manutenção a uma lógica perversa, excludente e injusta onde, paradoxalmente, a violência é profetizada como caminho à paz?
Há quem, por ingenuidade ou autodesprezo, subestime a capacidade do povo brasileiro em alcançar exemplos bem sucedidos em outros países. Mas, como ensinava Nelson Mandela, preso político acusado até mesmo de terrorismo durante o apartheid por lutar de forma pacífica contra a segregação étnico-racial em pleno século XX: da mesma forma que é possível ensinar o ódio, é possível ensinar o amor. Se livrar de armas e se armar com livros, com educação. Guerra, contra a ignorância. Matar, só a fome. Resgatar o valor da vida, que deve ser sempre muito maior do que qualquer lucro que possa vir de mortes e destruição.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.