Certamente a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi a mais importante política pública do Brasil definida pela Constituição de 1988. Juntamente com a implantação do SUS, foi desenvolvido o mais amplo e consequente programa de saúde que é a atenção primária (AP) ou básica (AB) de saúde (AP/AB). Estou utilizando ambas as terminologias pois importantes instituidores deste programa preferem um ou outro termo e isto, a meu ver, é apenas semântico e não compromete sua importância estratégica ao País. É quase um jargão quando dizemos que a AP/AB é a grande ordenadora e organizadora do SUS.
Mesmo o sistema de saúde complementar (privado) tem implementado ações neste sentido, reconhecendo a sua importância. No contexto da AP/AB foram organizados as unidades básicas de saúde (milhares em todo território nacional) e os núcleos de apoio à saúde da família (NASFs) com todas as suas equipes multiprofissionais que incluem médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, dentistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, agentes comunitários de saúde, dentre outros que atuam em todas as atividades meio e finalísticas. As equipes da saúde da família têm sido fundamentais para dar sustentação ao SUS, particularmente neste período de enorme desafio trazido pela pandemia de SarCov2 a nosso país.
Certamente, não houvesse uma AP/AB organizada em nossa cidade, as dificuldades no enfrentamento da pandemia no sistema de urgência e emergência e hospitalar seriam muito maiores.
Hoje, Campinas conta com cerca de 220 equipes de saúde da família e comunidade com cobertura de aproximadamente 70% da população. Estes são números adequados e que devem ser mantidos ou ampliados no futuro. Muito importante tem sido, ainda, o papel dos conselhos locais de saúde que trabalham pela comunidade na busca das melhores condições de trabalho aos servidores da saúde e assistência integral à saúde, incluindo a farmacêutica, a seus cidadãos. Certamente, milhões de procedimentos são feitos todos os dias em nossas unidades de saúde e em domicílios através da AP/AB, principalmente, pelas equipes da saúde da família e comunidade.
Sem a ordenação da AP/AB, manteríamos o estado de desorganização do sistema com consultas médicas, odontológicas, de enfermagem, etc. isoladas, com distanciamento físico e funcional dos serviços, enorme retrabalho nas ações de saúde com custos elevados de todas as ordens e, o mais grave, um sistema não integrado e não resolutivo. Um sistema desorganizado produz estimativamente 200% a mais de encaminhamentos, pressionando os sistemas de especialidades (policlínicas, centros de referência, universidades etc.), de urgência e emergência e de hospitais de maneira insustentável. Um adequado sistema de AP/AB deve encaminhar, no máximo, 15% de seus pacientes a outras instâncias de atendimento hierarquizado e descentralizado. Assim, estima-se que 85% de todas as necessidades dos cidadãos devem ser providas pela AP/AB. O cuidado à grande maioria dos pacientes e usuários pode e deve ser feito pelos profissionais da AP/AB.
O contínuo atendimento aos adultos bem como às crianças em suas demandas habituais, tais como o acompanhamento clínico e laboratorial de gestantes de risco standard, o monitoramento do desenvolvimento e crescimento das crianças, os controles das doenças crônicas não infecciosas de maior prevalência como o diabetes tipo II, hipertensão arterial sistêmica, obesidade, saúde mental etc. deve estar vinculado a AP/AB.
Entretanto, este sistema deve ter absoluta prioridade dentro do SUS.
A AP/AB deve ser sempre fortalecida, a integração dos serviços deve ser contínua, a capacitação e reciclagem dos profissionais deve ser constante, a informatização da rede é crítica para garantir acesso às informações de forma ágil e contínua e a constante melhoria das condições físicas das unidades para garantir segurança e conforto aos profissionais e aos usuários do SUS.
Sempre fui um apologista do “simples”, mas creio ser fundamental que as unidades ofereçam adequada estrutura para um trabalho prazeroso e produtivo. Creio ainda que a rede de AP/AB é um poderoso instrumento de formação profissional, não só para a questão cognitiva, mas principalmente para que nossos jovens profissionais conheçam a realidade de nossa sociedade e, quem sabe, se apaixonem pelo SUS e dele participem e exerçam suas profissões no futuro. Fundamental, ainda, é o desenvolvimento de sentido ético do trabalho da saúde junto à comunidade.
Tenho absoluta certeza de que o SUS e os profissionais de saúde cresceram na avaliação e respeito de nossa sociedade durante a pandemia do novo coronavírus. Tenho certeza ainda que este fato se deveu, em grande parte, pelo trabalho desenvolvido pela AP/AB. O número de ações e procedimentos durante a pandemia foi infinito. Neste momento, vemos o enorme esforço da saúde pública no processo de vacinação onde o DEVISA e AP/AB são os grandes alicerces deste organizado e vitorioso programa, não só em Campinas, mas em todas as cidades.
É absolutamente admirável acompanhar este enfrentamento realizado com competência e compromisso público.
Nós devemos aplaudir e admirar este trabalho que dá sustentação a um dos mais difíceis períodos da saúde pública brasileira e que se manterá no futuro.
Toda a prioridade à AP/AB.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020