A vida só terá sentido para a jovem Hikari (Aju Makita), se ela encontrar o filho amado. E só há um princípio capaz de dar sentido à vida da dona-de-casa Satoko (Hiromi Nagasaku): desfrutar da alegria da maternidade desde que não seja a qualquer preço. Estes conflitos norteiam Mães de Verdade (Japão, 2020, 2h20 min.), da premiada nipônica Naomi Kawase, considerada uma das mais importantes cineastas da atualidade.
O roteiro da diretora e de Izumi Takahashi e An Tôn Thât, escrito a partir do romance de Mizuki Tsujimura (2015), evita mergulhar no lado sombrio do ser humano. Antes, são conflitos que ressaltam nossa porção iluminada: amor, no caso de Hikari e ética, no de Satoko (que nasce de sentimentos bons, como misericórdia e desapego).
Coincidência ou não (certamente, não), trata-se de um filme quase todo realizado por mulheres: autora do romance, diretora, roteiristas, personagens centrais e a temática.
Corre o risco de cair no clichê quem aposta que o olhar feminino no cinema é mais delicado e sensível que o dos homens, mas, em Mães de Verdade, esta tese resulta corretíssima.
Veja o traile no link: https://youtu.be/yMNNpYV1Hw4
Uma das razões, como foi dito, é a capacidade de criar situações antagônicas sem ressaltar o lado obscuro do ser humano – um mérito e tanto. Claro que há sofrimento. A ausência do filho desperta dor, saudade e revolta em Hikari por causa das circunstâncias que determinam a separação. A possibilidade de perder o filho gera medo, insegurança e raiva em Sotoko. E, no conceito moralista da sociedade, em especial da mãe de Hikari, surge nossa porção desprezível; porém, esta não a temática protagonista.
Outra razão é a delicadeza da direção no tratamento dos temas. De um lado, Hikari fica grávida aos 14 anos e a família a obriga a se internar em clínica longe da cidade dela e onde ninguém saberá do nascimento da criança. De outro, casal impossibilitado de ter filhos adota Asato (Reo Sato) sem mensurar, inicialmente, as razões de a garota se desfazer do bebê.
São assuntos complexos. Em história similares, contadas em outros filmes, é comum haver um vilão (ã) fazendo o jogo do mal contra o bem. Nas mãos de Naomi Kawase, a história ganha força não pelo embate entre as partes, mas pela busca de soluções. Aqui, a dor é dividida e a compreensão compartida.
A delicadeza da direção vem acompanhada da beleza. As cenas iniciais da mãe adotiva Sakoto com Asato são comoventes. Sim, é fácil se encantar com crianças, mas também há espaço de encanto com a mãe, que é adulta, porque Hiromi Nagasaku alcança performance brilhante ao expressar ternura com apreensão e felicidade e com insegurança e consciência do papel dela – qualidades que demonstram o tamanho do talento da atriz.
E é sutil e, ao mesmo tempo, exuberante a maneira como a direção se utiliza das paisagens dos vários cenários do filme como se fossem vinhetas que nos distanciam da dura realidade: pode ser panorâmica sobre a cidade, ou as famosas flores de cerejeiras, passeio de Hikari com o namorado Takumi (Taketo Tanaka) em uma ponte, ou cuidado com as variações de cores nos flashbacks; estes, quase sempre, associados ao sépia.
Obviamente, o filme desperta a empatia do espectador. E, mesmo sendo um melodrama, e de as lágrimas aparecerem em diversos momentos na vida dos personagens, a diretora evita eloquência na encenação. O choro de Hikari, ao entregar o filho, por exemplo, é tão sofrido, mas tão contido que parece querer esconder a dor. Entretanto, provoca poderoso efeito dramático.
Ao terminar a sessão, ficamos com a impressão de termos visto um filme sombrio e, de fato, a sensação se confirma se pensarmos que a vida de Hikari tem desacertos de sobra. Ocorre que a direção trata de colorir as dificuldades porque estas fazem parte do drama. Passada a impressão inicial, percebemos que o filme tem várias camadas e então ele se revela triste, mas, também, generoso.
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João Nunes é jornalista e crítico de cinema