Há constantemente um grande debate nacional de como garantir acesso e qualidade de acesso aos pacientes portadores de tumores malignos. Eu, em diversas ocasiões, me posicionei no sentido que o Brasil precisa de um novo modelo de cuidado e de financiamento da área do câncer. O atual sistema é ultrapassado e não consegue acompanhar, minimamente, as evoluções que a ciência nos apresenta.
Hoje gostaria de discutir algo fundamental para esta área do conhecimento que é como garantir o essencial ao paciente com câncer no estado-da-arte presente. Creio que, atender o paciente com o que a ciência coloca como essencial é o mínimo que podemos fazer em favor de nossos doentes. O conceito do que é essencial vem sendo discutido e apresentado a todo o mundo pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há mais de duas décadas.
Existem duas listas: uma lista padrão de remédios, com 479 moléculas em 2021 e uma para o grupo pediátrico, que vem sendo feita há sete anos e que contempla 350 fármacos.
Esta lista da OMS é de domínio público, revista e atualizada todos os anos (a última foi em 2021) e é denominada “Executive Summary: The selection and use of essencial medicines – 2021 (1)”. Nesta última versão, 15 sessões de interesse da saúde foram apresentadas e discutidas sendo recomendadas a inclusão de 20 novos fármacos na lista geral e 17 na lista de remédios pediátricos. Foram ainda retirados dois remédios para a substituição por dois novos.
As classes de fármacos são extensas e incluem: 1- antídotos e outras substâncias contra envenenamento; 2- anticonvulsivantes e antiepiléticos, 3- antibióticos, 4- antituberculose, 5- antifúngicos, 6- antirretrovirais, 7- anti-migrânea (enxaqueca), 8- imunomoduladores e antineoplásicos, incluindo drogas de suporte, 9- drogas dermatológicas, 10- antissépticos e desinfetantes, 11- imunobiológicos, 12- saúde reprodutiva e perinatal, 13- saúde mental e doenças comportamentais, 14- doenças articulares e 15- preparações dentais. Vamos nos deter aqui apenas aos fármacos incluídos na oncologia e, mesmo assim, sem dar muitos detalhes.
Nesta revisão de 2021, a OMS recebeu a sugestão de inclusão de 23 fármacos oncológicos de fontes diversas através do mundo. A ideia é que, com o esforço e apoio dos especialistas, pudessem identificar e priorizar os mais eficientes remédios contra o câncer e com indicações clinicamente relevantes em seus benefícios.
O critério que já havia sido estabelecido em 2019 pelo comitê de especialistas para a magnitude do benefício clínico (Sociedade Europeia de Oncologia Médica – Magnitude of Clinical Benefit Scale -ESMO-MCBS Score), para que haja a recomendação, deve haver um ganho mediano em sobrevida global de, pelo menos, quatro a seis meses em relação aos tratamentos standards precedentes. Foram consideradas novas drogas e novas indicações.
As análises foram feitas antes da reunião virtual promovida pela OMS e havia um comentário escrito a respeito de cada pleito para a futura deliberação do Comitê de Especialistas. Dentro deste documento, também foram listadas ainda as não recomendações que poderiam ser temporárias ou definitivas. O que ficou muito claro a nós leitores deste documento, é que havia um enorme cuidado com a garantia da eficiência do que havia sido proposto e levando em conta o momento e a disponibilidade orçamentária dos diversos países do mundo, sempre buscando a garantia da equidade. Assim, apenas para efeito de exemplificação, foram feitos comentários para não recomendar novos fármacos para mieloma múltiplo e na incorporação do tratamento com as Car-T Cells.
Mesmo reconhecendo a importância, o comitê preferiu aguardar novas evidências e a possibilidade de ampliação de acesso para ambos.
Estes dois temas, voltarão nas avaliações futuras da OMS. O que tenho advogado e sugerido, e tentaremos fazer uma proposta no âmbito da onco-hematologia através da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), é que possamos garantir aos pacientes brasileiros, sejam do SUS ou do sistema complementar, o que a OMS considera essencial.
Minha preocupação é que hoje, mesmo que não sejamos um país “pobre”, o sistema de assistência e ressarcimento ao tratamento dos pacientes oncológicos não permite que façamos sequer o que é essencial. Não se trata de fazer o mais moderno ou avançado, e sim de não fazer o mínimo que estamos chamando de essencial. Se a própria OMS que deve propor políticas públicas acessíveis a todos os países do mundo, com todas as diferenças sociais e econômicas que sabemos que existem entre as várias nações, havendo um enorme abismo entre muitas delas, não consegue sensibilizar um país como o Brasil a fazer o mínimo aos seus cidadãos.
É inaceitável que tenhamos verdadeiros “batalhões kamikaze” no país, sem acesso ou com péssimo acesso no diagnóstico e tratamento do câncer. Garantir o essencial é nossa obrigação.
A sociedade precisa saber que estamos fazendo menos do que poderíamos ou deveríamos. Precisamos, com urgência, repensar todo o sistema de oncologia brasileira com a criação de novas estruturas adequadas e especializadas, criar um modelo de assistência e de financiamento, estabelecer as redes de oncologia, regionalizadas e hierarquizadas, e garantir o essencial em termos de remédios para o tratamento e cura do câncer.
Já estamos vivendo com uma defasagem enorme em relação aos países mais desenvolvidos e, o que é pior e inaceitável, estamos abaixo do que deveria ser o essencial e não em nossa visão, mas sim da OMS.
1- Executive Summary: The Selection and Use of Essential Medicines. Report of the 23rd WHO Expert Committe on the Selection and Use of Essential Medicines – Virtual meeting, 21 June – 2 July 2021.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020