Veneza (Brasil, 2019, 87 min.), direção de Miguel Falabella e roteiro dele adaptado da peça homônima do argentino Jorge Accame, se sustenta sobre três pilares dramáticos: brincadeiras infantilizadas e dramalhões catárticos que evocam a inocência perdida do circo, a crença de que prostitutas ganham para fazer sexo, mas no coração delas habita o amor (e empresta certa ingenuidade, igualmente, perdida à profissão) e a tragédia da prostituição masculina.
Há um tanto de realidade e muito de fantasia nos três universos retratados. Circos e prostíbulos naqueles moldes quase nem mais existem, pois representam um tempo remoto no qual boleros eram trilha sonora e máquinas de tocar música uma novidade. O primeiro foi engolido pela imagem eletrônica onipresente e, o segundo, pelo sexo virtual. E, se é possível encontrar um resto de romantismo entre as mulheres prostitutas, violência e preconceito fazem parte quase integral do mundo dos pares masculinos, como vivencia o personagem Julio (Caio Manhente).
O diretor tem consciência da limitação imposta pelo inocente, pelo ingênuo e pela realidade crua e assume, sem medo, a nostalgia, a evocação e a dramaticidade como forma de tocar a emoção do espectador. E consegue. Eis a grande virtude de Veneza.
Uma maneira de manter viva a atmosfera emocional são diálogos de linhagem poética. Nem o fato de soarem sofisticados na boca de prostitutas os fazem perder a força porque estamos no terreno da fantasia – como se vê em todo terceiro ato. “Será que existe mesmo uma cidade que flutua sobre as águas?”, diz a prostituta Rita (Dira Paes). Ou a Gringa jovem (Camila Vives): “Não se pode ser feliz nem por uma hora, se o amor for comprado”. Ou Tonho (Eduardo Moscovis), trabalhador da casa: “Estamos perto do sol”.
Não importa a procedência dos versos, mas a destinação: o texto busca a intenção, pois se reconhece o tempo todo mergulhado no universo irreal do sonho, o lugar onde tudo se realiza. Neste caso, a insistência da antiga dona de bordel Ginga (Carmem Maura) em conhecer a cidade italiana. Quando jovem teve a chance de viver naquela cidade – presente de admirador italiano apaixonado – mas se negou a viajar.
Falabella constrói belas imagens e eleva a capacidade de os personagens sonharem e reproduzirem essa atmosfera ao espectador, seja nos bonitos travellings, planos abertos (iguais ao da abertura), ou na valorização do close que acentua o trabalho dos atores – linda a cena em que Rita ri deliciosamente diante da graça do palhaço.
E o ótimo fotógrafo Gustavo Hadba consegue tirar o espectador da realidade e transportá-lo para o plano onírico com cores e olhar que remetem a um passado impreciso.
Veja o trailer do filme no link https://www.youtube.com/watch?v=L_VTi4MLgsM
Completam a equipe com destaque a bela direção de arte de Tulé Peak, a montagem de Diana Vasconcellos, que dá ao filme o ritmo que ele pede, sem a pressão contemporânea do cinema de acelerar a cena, como se o andamento fosse mais importante que a própria cena, e a música de Josimar Carneiro, em especial o bonito tema de abertura. Alguém poderá se incomodar com cenas de sexo e linguagem vulgar, mas não se pode esquecer que o cenário é uma zona de prostituição.
Mérito da direção, a encenação crível e minuciosa de cada movimento é coreografada de modo a valorizar o essencial – o que interfere diretamente na performance dos atores. Que prazer assistir a Dira Paes dizer falas comuns com peso e verdade que só as grandes atrizes conseguem. Imagine quando lhe dão frases que exigem trabalho árduo para encontrar a correta intenção, como: “Vou, mas em busca do teu amor; é outra viagem”.
Se Carmen Maura tem carisma, capacidade de encantar com olhar poderoso e força interpretativa capaz de fazer vibrar o texto, Dira reúne beleza que a tela grande acentua, delicadeza no jeito de interpretar, intuição que nos convence em tudo que faz e talento para jogar com a personagem como um craque de futebol brinca com a bola. Ver Carmen e Dira abraçadas no desfecho é um presente de Miguel Falabella ao espectador de Veneza.
Em cartaz no Cinemark do Shopping Iguatemi e no Cinépolis do Galleria Shopping. Não recomendado para menores de 16 anos
João Nunes é jornalista e crítico de cinema