Entre ter a primeira experiência sexual com a tia Patrizia (Luisa Ranieri) e ver o craque argentino de futebol, Diego Armando Maradona, jogando no Nápoles, o adolescente Fabietto Schisa (Filippo Scotti) ficaria com a segunda opção em “A Mão de Deus” (È stata la mano di Dio, Itália, 2021, 130 min.), de Paolo Sorrentino.
Mas o que acontece com o garoto depois de vivenciar a experiência sexual (e não foi com Patrizia) e ver o Nápoles se consagrar ganhando o título nacional, com a devida presença de Maradona em campo? Ele havia crescido – como demonstra a cena da comemoração dos torcedores pela cidade. E ele nem usava mais o codinome Fabietto, pois tinha assumido o nome real, Fabio.
O filme trata do processo iniciático do próprio diretor em sensível olhar sobre si mesmo e sobre a Itália dos anos 1980, a partir de Nápoles, a grande cidade do sul, onde Fabietto vive com os pais Saverio (Toni Servillo) e Maria (Teresa Saponangelo).
Para demarcar como se deixa de ser menino e se torna adulto, Sorrentino tinge a iniciação com tintas poéticas e se vale de símbolos, caso da referida comemoração do título, dolorido retrato do momento decisivo do rito de passagem.
Portanto, Maradona é mero símbolo (que muda porque nós mudamos) do que o garoto foi e no que se transformou. E a mão de Deus, referência ao gol feito pelo jogador contra a Inglaterra, na Copa do Mundo de 1986, vai muito além de um gol, de um título e de uma contratação milionária do craque de futebol, como se este tivesse, ademais de carisma e talento, poder de implementar reais transformações sociais, morais e políticas naquela região italiana.
Na primeira parte das memórias do diretor, existe um país alegre, colorido e descontraído no qual se reconhece figuras que povoaram o universo de Federico Fellini (1920-1993). A citação não é gratuita, pois Marchino (Marlon Joubert), irmão de Fabio, passa por teste de figuração em filme do mestre italiano e não é aceito por ter rosto demasiadamente convencional.
O traço exótico (para nós) de mulheres obesas, matriarcas grosseiras e engraçadas, fisionomias incomuns e tipos característicos excêntricos, como o tio comunista que ideologiza até o gol de uma partida de futebol, ou a tia Patrizia que não se importa em ficar nua em passeio familiar (para desespero do marido) e o almoço familiar que recepcionará o novo genro estão em um filme que parece comédia.
Um outro filme, escuro, denso e triste, surge depois de uma tragédia, como para referendar o princípio de que todo rito de passagem pesa. Ninguém atravessa ileso o momento no qual terá de decidir o próprio futuro. Ninguém será o mesmo depois de experimentar o sexo – a experiência de Fabio com a baronesa (Betty Pedra) foi especialmente urdida de forma, também, ritualística a fim de marcá-lo para sempre – e ninguém será o mesmo depois de nominar, com todas letras, a opção escolhida daquilo que se quer ser quando crescer.
E, todos sabemos, Sorrentino quis ser cineasta. Como condutor do filme que fala de si, ele escolhe o bom ator Filippo Scotti, mas, antes de tudo, escolhe alguém que sabe olhar – afinal, cineasta traz o cinema nos olhos.
Fabio se encanta com os seios de Patrizia, jamais se esqueceu do traficante que passou por ele em aventura no mar (e se fizeram amigos), da primeira vez que viu filmagem ao vivo (homem descendo dos céus de Nápoles, à noite, de cabeça para baixo), da mesma cena mimetizada na tela do cinema, da performance da atriz interpretando clássico grego, da avó de olhos fechados que sabe estar sendo observada e, principalmente, daquilo que ele foi impedido de ver.
Não importa a imagem, o olhar de Fabio é de alguém embasbacado ante a visão.
Importante é o fascínio que a imagem (seja qual for) exerce sobre ele ou sobre qualquer pessoa em busca de si mesmo. Ocorre que grande parte das pessoas jamais experimentou semelhante estado de espírito. Por isso, o aguçado olhar de Fabio é tão significativo.
Não foi acaso, portanto, que tal experiência sensorial memorialista tenha se transformado em belo filme. Indicado ao Oscar 2022 na categoria filme internacional, “A Mão de Deus” está disponível na Netflix.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema