Impressionante como se falou em pesquisa clínica durante a pandemia do SarsCov2. Durante todo este tempo, os meios de comunicação ocuparam extensos períodos fazendo entrevistas e discussões sobre pesquisas clínicas relacionadas às inúmeras vacinas que chegaram ou foram desenvolvidas no Brasil. A pesquisa clínica organizada, harmonizada cientificamente e com controle ético, é uma conquista recente, eu diria que se desenvolveu após a década de 70. Antes disto e em praticamente toda a história da medicina, os avanços da ciência em saúde eram baseados em relatos empíricos ou descritivos e eram, em geral, análises retrospectivas ou de séries de casos. Estes métodos continuam tendo a sua importância e jamais deixarão de contribuir ao desenvolvimento da ciência na área da saúde. Estudos epidemiológicos fundamentais são, em geral, estudos de caso-controle que são retrospectivos.
Importantes áreas da saúde não têm ou terão pesquisas clínicas prospectivas e comparada como as que reportarei ou porque fazem parte de grupos de doenças raras onde não é possível alcançar tamanhos amostrais significantes ou não é possível “aleatorizar” o que se pretende estudar por diversas razões. Posso citar aqui os estudos em transplante de medula óssea que, inclusive, foram vencedores de Prêmio Nobel de Medicina em 1990. Mas, a sistematização da pesquisa clínica possibilitou que trabalhos prospectivos e controlados, isto é, olhando para frente com controle da qualidade dos dados e tamanho amostral adequado, fossem organizados trazendo segurança no desenvolvimento de novos fármacos, imunobiológicos, combinações terapêuticas, novos procedimentos, profiláticos etc.
Estudos controlados com metodologias semelhantes permitem ainda que agrupemos estudos e potencializemos os seus resultados. Estes agrupamentos são denominados “meta análises” e são os de mais elevados níveis de evidências.
A pesquisa clínica busca obter de maneira controlada a eficácia e a segurança nas novas abordagens médicas em seres humanos.
Ela é precedida das chamadas pesquisas pré-clínicas que incluem desde a síntese, o desenvolvimento ou o isolamento de um princípio ativo, por exemplo, seguida pelos estudos laboratoriais in vitro e, posteriormente, em modelos animais de pequeno e/ou de grande porte. Quando a pesquisa clínica se inicia, há necessidade de um dossiê de informações científicas que balizam a elaboração dos projetos sequenciais de pesquisa de fases 1, 2 e 3. Os estudos de fase 4 são aqueles que ocorrem no período pós marketing e não serão alvo deste artigo.
Os estudos de fase 1 têm como objetivos primários determinar a máxima tolerância (segurança). São estudos feitos com aumento escalonado de doses e monitoramento padronizado dos efeitos adversos até atingir níveis aceitáveis de toxicidade e com algum ganho clínico. Tem como finalidade obter doses seguras para futuros testes de eficácia terapêutica. São realizados com subgrupos homogêneos e selecionados e/ou de alto risco.
Podem, ainda, ser realizados em voluntários sadios ou em grupos especiais de pacientes que se disponham a participar voluntariamente em situações especiais de sua evolução clínica e que tenham condições orgânicas adequadas para se submeterem ao experimento. São grupos, em geral, pequenos de pacientes ou voluntários, e que são submetidos usualmente ao incremento gradual de doses em grupos sucessivos. São menos complexos do ponto de vista estatístico. Entretanto, são estudos onde existem frequentes dilemas éticos para inserir pacientes pois os benefícios podem não ser conhecidos e as informações podem ser limitadas. A falta de resultados limitará os estudos de fase 2.
Os estudos de fase 2, são estudos que têm como objetivo a definição da eficácia. Utiliza, em geral, o binômio “resposta-não resposta” onde a obtenção de respostas objetivas, se possíveis completas, são fundamentais. Estes estudos têm sido muito utilizados nas últimas décadas e são muito úteis como “estudos piloto”. No campo da oncologia, são estudos amplamente utilizados nos centros de pesquisa de todo o mundo.
Os estudos de fase 3 são, certamente, os mais convincentes, mas também os mais caros e que exigem grande organização.
São estudos aleatorizados (randomizados) e fundamentais para a avaliação de novas terapias. O paciente ou participante é inserido através de uma “randomização” (sorteio) para se determinar qual terapia é superior. São estatisticamente balanceados no número de pacientes e no tempo de observação, em cada braço do estudo. Toda a lógica estatística deve ser precisamente apresentada e todos os “erros estimados standards”, intervalos de confiança e significância estatística devem ser adequadas e detalhadamente apresentadas. Estes estudos requerem protocolos detalhados, um guia de organização e plano de análise de resultados (intermediárias e final).
Fundamental é se assegurar que ninguém tenha conhecimento da alocação dos pacientes/participantes. O sorteio é feito através de números gerados antecipadamente ou quando os pacientes são inseridos, por computador. Um ponto crítico e que mostra a dificuldade do desenvolvimento das vacinas para o SarsCov2 é que a inserção e extensão do tempo de análise devem ser suficientemente longos para ter adequados números e tempo de observação.
Enquanto os estudos de fase 1 e 2 têm foco em toxicidade e resposta, os estudos de fase 3, em geral, concentram os eventos de longo prazo, tais como, sobrevida, recidiva, progressão dentre outros desfechos definidos nos projetos de estudo.
Portanto, os estudos de fase 3, são estudos dependentes do tempo e isto não há como ser superado. Dentro de um cenário de grave crise sanitária como estamos vivenciando, não há como aguardar a definição de todos os endpoints dos estudos de fase 3. Certamente, as informações dos estudos de fase 1 e 2 seriam suficientes para que as agências regulatórias liberassem as vacinas sem que estudos de fase 3 fossem finalizados. Isto já poderia ter ocorrido em outubro de 2020. Infelizmente, isto não ocorreu e perdemos precioso tempo.
As pesquisas clínicas, portanto, são avanços contemporâneos e ainda teremos muito a aprender no futuro.
Elas mudaram nosso modo de ver a ciência com seres humanos dando mais segurança e confiança à população. Para o País, é fundamental apoiar as pesquisas clínicas criando centros equipados e com profissionais treinados para este fim.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020