Nos próximos dois artigos que escreverei para esta coluna, pretendo falar da mais prevalente síndrome clínica na humanidade e sua associação com os tumores malignos (cânceres) que é a anemia. Se fizermos um corte no dia de hoje na população de nosso planeta, cerca de 40% da população apresentará anemia em suas mais diversas formas e intensidades. A prevalência de quadros anêmicos é mais elevada que a das síndromes gripais, por exemplo.
Anemia, portanto, não é doença, é “sintoma” e/ou “consequência” associada a um espectro enorme de doenças e outras síndromes clínicas. Assim, a presença de anemia exigirá que o médico faça a investigação para determinar a causa, isto é, qual a doença que no caso, agora singular ao paciente, está sendo a causa da anemia.
A investigação da anemia exigirá que sejam feitos anamnese e exame físico adequados e que possam auxiliar na investigação laboratorial complementar. Importante lembrar que os padrões de normalidade dos níveis de hemoglobina e dos índices hematimétricos variam com a idade e o sexo e devem ser lembrados e considerados pelo médico no momento da definição de haver ou não anemia.
A definição prática de anemia pode ser “a redução dos níveis de hemoglobina e do hematócrito levando-se em conta a idade e sexo do paciente”. Uma definição mais funcional seria a “incapacidade de os glóbulos vermelhos transportarem e liberarem o oxigênio aos órgãos e tecidos de todo o organismo”.
Neste caso, haveria situações excepcionais onde isto poderia acontecer. Lembremo-nos das mortes da Boate Kiss onde a intoxicação por cianeto causou a morte de centenas de jovens por hipóxia (falta de oxigênio) e que não tinham anemia. Nestes casos, a hemoglobina saturada de oxigênio não conseguia liberá-lo aos tecidos levando à morte dos jovens absolutamente sadios. A chave fundamental para a investigação da anemia está na fisiologia de produção, circulação e meia vida dos glóbulos vermelhos (hemácias). Como sabemos, a “fábrica” do sangue é a medula óssea, conhecida popularmente como o “tutano” do osso.
Este tecido altamente proliferante, é o produtor dos glóbulos vermelhos, grande parte dos glóbulos brancos (neutrófilos, basófilos, eosinófilos, monócitos, linfócitos de derivação, bem como transporta os linfócitos de derivação T, e produz ainda as plaquetas. De maneira muito simples, os glóbulos vermelhos transportam e liberam o oxigênio a todos os órgãos e tecidos do organismo; os glóbulos brancos são os nossos elementos de defesa antimicrobiana e antitumoral (parte integrante e importante do sistema imunológico) e as plaquetas como parte de nosso sistema de coagulação sanguínea. Esta breve descrição demonstra a importância e complexidade do sangue apenas em seus componentes celulares.
Não estamos falando do componente líquido do sangue, igualmente rico e vital ao nosso organismo. Quando temos um paciente com anemia o raciocínio é simples e deve seguir a seguinte lógica: a anemia é secundária a má produção de glóbulos vermelhos pela medula óssea ou é devido a perda de sangue – hemorragia (aguda ou crônica) ou ainda é devida a redução do tempo de vida dos glóbulos vermelhos que fisiologicamente é de 120 dias (hemólise)?
Outra forma de raciocinar é se a causa da anemia é central (redução de produção pela medula óssea) ou periférica (perda de sangue – hemorragia ou destruição precoce do glóbulo vermelho – hemólise)? É claro que podemos ter causas combinadas no próprio paciente e isto não é raro. Do ponto de vista epidemiológico, o tipo de anemia mais frequente em todo o mundo é a anemia ferropriva, isto é, anemia devido a carência de ferro.
O ferro é componente fundamental da hemoglobina sendo elemento do núcleo central desta proteína transportadora de oxigênio. Apesar de possível, a carência alimentar não é a primeira causa desta anemia e sim a associação de perda de sangue com redução da produção de glóbulos vermelhos pela medula óssea devido à falta da matéria prima vital, o ferro.
A capacidade de “reciclar” (turnover) o ferro orgânico é enorme e de cerca de 99%. O ferro do organismo também é utilizado na composição de vários tecidos de revestimento como a pele, as unhas, os pelos e os cabelos etc. Todo o restante é utilizado para a produção dos glóbulos vermelhos. Assim, para haver uma anemia por carência de ferro, devemos ter uma perda que, muitas vezes, é insensível.
Na prática, as perdas menstruais exageradas e as doenças intestinais, inflamatórias ou neoplásicas, são as grandes causas para a anemia ferropriva. Também ganha grande importância neste campo, as gestantes que consomem grande quantidade de ferro para produção do “lago” placentário bem como para a produção do sangue do bebê.
Outro grupo mais vulnerável é o das crianças. No passado, nós víamos mais anemia ferropriva em crianças devido às verminoses, com perdas insensíveis de sangue. Apesar de ter havido uma redução nestes casos em nosso meio, eles continuam existindo. Além disto, o crescimento da criança com consequente crescimento do volume sanguíneo, exige maior quantidade de nutrientes, entre eles, do ferro.
Deste modo, quando estivermos diante de uma anemia ferropriva devemos desconfiar de que haja um “ladrão vazando”. Procurar a causa do sangramento, em muitas vezes, pode determinar a presença de doenças, por vezes, graves. É assim, com o câncer de cólon intestinal e reto cujo primeiro sinal e sintoma, em muitos casos, é a presença de anemia ferropriva.
Outro grupo importante está associado às doenças metabólicas.
Aqui devemos lembrar o hipotireoidismo. Outra causa importante de anemia é a associada à insuficiência renal crônica. Nestes casos, a anemia está associada a falta de um hormônio fundamental produzido pelos rins e que se reduz intensamente durante o quadro de insuficiência renal, que é a eritropoetina. Entretanto, o espectro de diagnósticos das anemias continua enorme e às vezes exige o trabalho especializado do hematologista.
As doenças por falência da medula óssea (leucemias agudas, mielodisplasias, anemia aplástica etc.); as síndromes hemolíticas, genéticas ou adquiridas; as anemias megaloblásticas etc. são exemplos de onde a participação de especialista é fundamental à definição diagnóstica e ao tratamento. Fica claro que, a anemia é um grande problema de saúde pública.
Tanto os profissionais de saúde como a população devem ter conhecimento básico sobre o assunto. Como sintoma ou sinal de muitas doenças, a conduta de um quadro de anemia não deve ser minimizada ou negligenciada
. Dependendo do tipo de anemia, todo um raciocínio fisiopatológico deve ser feito para a conclusão diagnóstica e orientação terapêutica.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.