No artigo anterior fizemos uma breve e objetiva abordagem a respeito das anemias, suas causas mais comuns e a importância deste tema dentro da clínica médica e da epidemiologia. Ficou claro que a anemia é uma síndrome clínica muito frequente, a mais prevalente dentre as síndromes humanas, e que faz parte de grande parte da medicina, direta ou indiretamente associada às doenças inflamatórias, infecciosas, infestações, gestações, doenças metabólicas, oncológicas, hematológicas, dentre outras.
Os sintomas mais relevantes das anemias são o cansaço, a fraqueza e a adinamia que podem ser extremos dependendo da velocidade de instalação e da profundidade da anemia. Por várias vezes, nesta coluna, fizemos considerações a respeito da importância aos seres humanos do câncer em nossa sociedade através do mundo demonstrando que grande número de pessoas são ou serão acometidos por algum tipo de tumor maligno durante a vida. De maneira atuarial, um em cada dois seres humanos deverão enfrentar um ou mais tipos de câncer durante a sua vida.
Em minha opinião, o enfrentamento do câncer, é o maior problema de saúde pública a ser desenvolvido pela humanidade através de seus sistemas de saúde nos próximos anos e no período pós pandemia. Neste contexto, vou tentar fazer uma análise que demonstra a importância da anemia neste extenso grupo de pacientes acometidos por câncer.
Os mecanismos associados à anemia nos pacientes com câncer são múltiplos e com fisiopatologia bastante ampla e variável. Em resumo, os mecanismos associados à anemia neste grupo de pacientes podem ser: 1- em pacientes cirúrgicos: perda sanguínea associada ao procedimento, particularmente em cirurgias gastrointestinais. Neste grupo de pacientes, podem se associar a redução do número de plaquetas, presença de distúrbios de coagulação como fatores que contribuem para o sangramento; 2- fatores nutricionais associados à caquexia (emagrecimento e desnutrição extremos associado ao câncer) e má nutrição com destaque às carências de folatos e vitamina B12 (ambas levando a anemia megaloblástica) e carência de ferro, discutido no artigo anterior; 3- Efeitos adversos hematológicos associados aos tratamentos com quimioterapia e/ou radioterapia que levam à mielossupressão, isto é, redução da capacidade da medula óssea de produzir os glóbulos vermelhos, brancos e plaquetas; 4- Infiltração da medula óssea pelo tumor sólido (por exemplo, mama, próstata, etc.) ou neoplasias hematológicas (por exemplo, leucemias, linfomas, mieloma múltiplo, etc.); 5- Hemólise em casos como a anemia hemolítica de causa auto imune que pode estar associada, por exemplo, à leucemia linfocítica crônica ou à síndrome hemofagocítica (entidade rara e muito grave); 6- Mecanismo imunológico e inflamatório mediado pela ação de interleucinas como a IL-6.
Assim, os mecanismos de anemia associados aos tumores malignos podem ser de causa periférica (sangue periférico) como a perda excessiva de sangue ou hemólise (redução da vida média dos glóbulos vermelhos) ou de causa central (falência total ou parcial da medula óssea) como a redução de produção de glóbulos vermelhos devido à desnutrição e carências acentuadas de ferro e vitaminas, mielossupressão por toxicidade do tratamento de base, infiltração da medula óssea pelo tumor e finalmente por mecanismos imunológicos mediado por interleucinas.
É claro que a melhoria dos quadros de anemias está diretamente associada à melhoria da doença de base. Mas, enquanto esta melhoria não chega ou mesmo quando não é possível, é fundamental o tratamento através de transfusões sanguíneas, da utilização de fatores de crescimento como a eritropoetina e, eventualmente, a utilização de ferro injetável baseado nos níveis de ferritina sérica. É claro também que a eficiência destes tratamentos dependerá do tipo e da gravidade das doenças de base e dos tratamentos instituídos.
Finalmente, devemos enfatizar a importância da anemia dentro da patologia humana. Todos os médicos e profissionais de saúde de qualquer especialidade se depararão com algum tipo de anemia em seu dia a dia de trabalho. Ter um raciocínio fisiopatológico adequado quanto ao diagnóstico e encaminhamento, é fundamental para a melhor conduta e a resolução (se possível) do problema.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.