Certamente, este é o momento mais difícil e desafiante jamais enfrentado por muitas gerações. Uma crise sanitária desta dimensão e gravidade sempre foi inimaginável mesmo aos mais atentos e informados dos seres humanos. Eu vivi muitos momentos difíceis na saúde pública ao longo de mais de quatro décadas de profissão como médico e professor universitário. Trabalhei na linha de frente com pacientes com meningite na década de 1970. Atuei no combate à transmissão do vírus HIV através do sangue e hemoderivados nas décadas de 80 e 90. Presenciei, infelizmente, a morte de grande número de pacientes com hemofilias pela transmissão do vírus HIV e da hepatite C através dos hemocomponentes e hemoderivados. Importante salientar que não havia dolo nessa transmissão de doenças pelo sangue. Nesse período, não haviam as técnicas de inativação viral ou produtos recombinantes. Os testes de triagem e diagnóstico destas doenças eram rudimentares e imprecisos.
Trabalhei, como secretário estadual de Saúde do Estado de São Paulo e municipal de Campinas, no enfrentamento de inúmeras doenças infecciosas tais como a cólera e, nesta última década, as arboviroses (dengue, zika, chikungunya e febre amarela). Todas estas duras experiências me ajudaram a enfrentar o Sars-Cov-2/Covid-19. Os desafios foram muitos, assim como os aprendizados.
Aprendi que a pandemia uniu muitas especialidades médicas e instituições públicas e privadas. Assisti a enorme solidariedade entre profissionais de saúde, instituições públicas e privadas e de toda a sociedade. Pudemos vivenciar o reconhecimento de nossa coletividade ao trabalho dos profissionais de saúde. Esta imagem positiva jamais havia sido manifestada no passado.
Vimos o SUS ser valorizado como um sistema organizado e fundamental ao enfrentamento desta pandemia. Enfrentar a pandemia do coronavírus sem o SUS seria “a barbárie” em nosso País. Entretanto e infelizmente, em minha opinião, tivemos muitos erros importantes na condução da pandemia.
Lamentavelmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) falhou ao não decretar a pandemia, pelo menos, um mês antes da data em que isto foi definido. Este fato, teria diminuído o fluxo de pessoas e aglomerações ao redor dos portos, aeroportos, etc. A OMS continua falhando em relação à política de vacinação ao redor do mundo.
Não se deveria admitir que países ricos comprassem e/ou armazenassem mais vacinas do que precisam para suas populações enquanto dezenas de outras nações permanecem sem os imunizantes. Faltou a autoridade desejada a um organismo multilateral, trabalho de organização e harmonização dos recursos, que garantissem o acesso universal e simultâneo às vacinas. A vacinas devem ser um bem público e universal, acessível a todos os seres humanos. Todo o esforço mundial no combate à pandemia estará comprometido caso não haja acesso universal aos imunizantes. O uso de máscaras deveria ter sido adotado logo no início da transmissão do vírus. Isto só foi aconselhado e adotado em maio de 2020.
No Brasil, sofremos ainda com a falta de um eficiente comando central e a politização em torno do assunto, bem como o negacionismo e as fake news.
Na assistência à saúde, milhares (ou talvez milhões) de exames de rastreamento, diagnóstico e monitoramento deixaram de ser feitos, havendo um represamento de todos os procedimentos clínicos e cirúrgicos em várias especialidades médicas e da saúde. O Brasil, para evitar um colapso, por exemplo na área da Oncologia, precisará criar urgentemente um programa que avalie a dimensão do problema e procure traçar no âmbito do SUS, em entidades públicas e privadas, estratégias de enfrentamento. Talvez, este seja um novo “tsunami” dentro da saúde pública a ser enfrentado após, ou mesmo, durante a pandemia.
No caso de outras doenças crônicas não transmissíveis, o atraso na ida aos serviços de saúde por diversas causas, entre elas, o medo da pandemia, certamente também vai gerar agravamentos. E o pior, não sabemos quanto tempo conviveremos com “dois sistemas de saúde”: o específico para a Covid-19 e o que cuidará de todos os demais pacientes.
Espero que as lições que a pandemia tem trazido sejam aprendidas a tempo pelas autoridades da área da saúde no Brasil e no mundo.
O fato é que estamos continuamente expostos a doenças vetoriais, zoonoses, endêmicas e/ou sazonais e sabemos que o combate aos vírus não terá fim. Novas ondas, provavelmente com novos vírus ou novas mutações, poderão ocorrer, causando novas ondas de contaminação através do mundo. O envelhecimento da população também agrega novos desafios em tempos de pandemia. Como cuidar e prevenir doenças e agravos em doenças crônicas não transmissíveis? Precisamos estar preparados para enfrentá-las com as melhores estratégias.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de Saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020