Consta que Ludwig van Beethoven (1770-1827) tinha um sonho que cultivou durante anos, o de musicar o poema “Ode an die Freude” (“Hino à Alegria” ou “Ode à Alegria”), do poeta Friedrich Schiller, um dos expoentes do movimento romântico. Pois o grande gênio da música materializou o antigo desejo em sua última composição, a obra-prima Sinfonia número 9 em ré menor, ou a Nona Sinfonia de Beethoven, como é conhecida e obrigatoriamente tocada por todas as orquestras do planeta.
A Nona inclui uma parte da Ode à Alegria, que exalta a beleza da vida e do mundo natural, como nestes versos: “Alegria bebem todos os seres/No seio da natureza;/ Todos os bons, todos os maus,/ Seguem seu rastro de rosas”. Clara a mensagem, de que a natureza distribui generosa e democraticamente os seus tesouros, não fazendo nenhuma distinção. Mensagem esquecida, pois ao longo da história alguns poucos desejam se apoderar desses tesouros e reservá-los só para si e seus próximos, em detrimento da maioria.
A natureza sempre serviu de inspiração para todos os grandes artistas através dos tempos. Leonardo da Vinci deixou cadernos e cadernos com desenhos de vários animais e recursos naturais, como rios, florestas e muitos outros. Ele sempre considerou a natureza a grande mestra, com todas as suas contradições.
“Por que a natureza não ordenou que um animal não vivesse pela morte de outro?”, perguntou em um de seus cadernos de anotações, em uma referência à cadeia alimentar que faz parte do equilíbrio da vida mas que também serve para ilustrar outras situações, envolvendo o animal ser humano, que às vezes se acha superior a todas as outras criaturas viventes.
Não existe, enfim, na esfera da grande arte, uma distinção clara entre cultura e natureza, como a sociedade moderna tem determinado. É como se elas fossem dimensões separadas, com a cultura de origem humana sendo superior à ordem natural, à natureza. Essa separação, esse divórcio entre cultura e natureza, está na raiz de um pensamento muito presente no mundo moderno, que orienta o crescimento a qualquer preço, desconsiderando os seus impactos no meio natural. Muitas das graves crises atuais têm sua origem nesse distanciamento artificial entre cultura/arte e natureza.
Em 1972, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) tentou romper esse buraco entre cultura e natureza.
Na Conferência de Paris, foi aprovada a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, ou Carta de Paris, sobre a urgência de proteção dos patrimônios existentes no planeta, de ordem cultural. Essa Convenção é a origem dos espaços e construções considerados patrimônios culturais da humanidade, mas também dos ambientais naturais que também devem ser considerados patrimônios mundiais.
No Brasil, por exemplo, são considerados patrimônios mundiais, pela Unesco, tanto ícones culturais como a cidade histórica de Ouro Preto, os centros históricos de Olinda e Salvador e as Missões Jesuíticas Guarani, no Rio Grande do Sul, como o Parque Nacional da Serra da Capivara (Piauí), as Reservas de Mata Atlântica do Sudeste e da Costa do Descobrimento e o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, entre os 23 sítios localizados no Brasil na lista do patrimônio mundial da agência das nações unidas.
A intenção da Unesco é clara, a de ressaltar a relevância do ambiental natural como um patrimônio universal, que deve merecer a devida atenção e proteção, assim como o patrimônio histórico construído pela humanidade, por seu fazer cultural. Em síntese, cultura e natureza em pé de igualdade.
Uma consequência direta desse raciocínio, que no fundo remete a uma celebração da beleza da vida em toda a sua extensão, a beleza natural e aquela que é fruto de mãos humanas, é que, quando falamos em sustentabilidade, também devemos considerar a fundamental importância da arte e da cultura em geral.
Defender a cultura, promover a cultura, em todas as suas manifestações, é praticar um desenvolvimento sustentável.
Muitas empresas já se conscientizaram sobre o significado de promover as artes e a cultura em geral, incluindo o desenvolvimento educacional, como parte de sua responsabilidade social, de seu compromisso com a sustentabilidade. Ainda há um amplo caminho aberto nesse sentido no cenário brasileiro, a ser preenchido pelo setor empresarial e também pelo poder público. Algumas ferramentas legais e políticas públicas já existem para que um maior investimento na cultura e educação ocorra no país. Falta a chamada vontade política e superar uma visão obscurantista que infelizmente ainda domina a prática de alguns setores da sociedade.
No Brasil, não faltam manifestações da vinculação entre cultura e natureza, pelo olhar e pela obra de muitos artistas.
Em 1962, dez anos depois que se radicou no Brasil, a desenhista de origem britânica Margaret Mee (1909-1988) fez as primeiras advertências sobre a destruição de ecossistemas no Brasil. Ela fez várias viagens à Amazônia e como resultado de uma delas, entre 1972 e 1973, elaborou um relatório sobre a destruição do bioma, entregue ao então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), antecedente do atual Ibama. O relatório foi noticiado na edição de 19 de agosto de 1973 do “Jornal do Brasil”, na reportagem “Desmatamento já cria desertos no país”.
Óbvio que os alertas de Margaret Mee e tantos outros artistas não foram ouvidos, mas eles têm feito a sua parte. Em 1974, no primeiro Salão de Humor de Piracicaba, que depois seria Internacional, o terceiro lugar entre os vencedores coube a uma charge do baiano Luiz Renato Bittencourt Silva, mostrando apenas uma árvore resistindo em meio ao avanço do desmatamento e servindo como abrigo aos pássaros sobreviventes.
Em 1978, a atriz Cacilda Lanuza concluía a sua peça “Verde que te quero verde, ou O Globo da Morte”, também denunciando a destruição ambiental. Na mesma época, Elis Regina, Irene Ravache, Ruthinéa de Moraes e Ruth Escobar, entre tantos outros artistas, participaram das passeatas “Pela vida, pela paz, Hiroshima nunca mais” pelas ruas do Centro de São Paulo, contra o projeto nuclear brasileiro.
São muitos e muitos casos, de apelos pela proteção da natureza, enfim, da vida, feitos por artistas com sua refinada perspectiva de mundo, assim como tantos deles se envolvem em questões sociais também urgentes.
Uma visão ampla, de fato transformadora, de sustentabilidade, não pode prescindir do cuidado com a cultura e a multiplicidade de linguagens artísticas.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]