Um grito, duas sílabas, um gesto. Ocorrência que se vem generalizando, ultimamente, nos campos esportivos. Agressão verbal ou mímica de torcedores contra atletas ou de atletas contra jogadores adversários. Preconceito, dizem. Ou talvez, com mais propriedade, uma expansão de ira no instante em que o ser se sente superado e vencido no campo comum da disputa igual. É um ato do homem derrotado.
Estrilo de compensação de sua própria insuficiência. Um desabafo diante da superioridade do adversário.
Não podendo vencê-lo pelas armas normais, o recurso é apelar para o berro contra os traços marcantes que, por força das convenções, inferiorizam socialmente o outro no núcleo da maioria dominante. Uma afirmação de cólera. É a chispa da ira em face da certeza do fracasso. Aparece diante do obstáculo, quando o ser se sente atingido, inferiorizado e de algum modo limitado, reduzido em sua capacidade. Acende-se a chama do rancor.
Exemplo : Dois, ao meio de disputa esportiva, se entrechocam: o branco chama o outro de negro.
Numa conversa normal, seria apenas a afirmação de uma raça. Mas naquele momento emocional de conflito interior, a declaração soa como enxovalhante, provinda de quem, por um acidente de cor, uma eventualidade, se julga socialmente superior. Orgulha-se de um ato que, em verdade, não passa de extremo compensativo do sentimento de derrota. Quando o agressor se supõe engrandecido, está, entanto, dando de si um retrato trágico de inferioridade física ou psíquica. Quando nos estádios europeus, a arquibancada se levanta para ofender com gritos deletérios um camaronês, não o agride simplesmente porque não é branco, porém pelo motivo supremo de ter feito gol contra o clube da maioria. Recentemente, publicaram os jornais, um atleta, expulso da partida por jogo violento, apontou para o seu braço branco, como a dizer ao árbitro negro: – preconceito!
Ressentimento de culpado contra um ato de justiça. Combinação de ingredientes, porque o atleta contrário com quem se colidiu também seria negro.
E não é só nos campos de atletismo – todos nós sabemos – que o fenômeno acontece em toda parte. Na rua, nas salas de espetáculos, nos restaurantes e nas escolas. Fenômeno. Uso aqui o vocábulo em seu conceito mais acético, isto é, definido como tudo que é percebido pelos sentidos e pela consciência. Só que para compreender é preciso também refluir ao significado, ainda que o mais singelo, da palavra consciência. Termo que, dizem os dicionários, representa sentimento ou percepção do que se passa em nós, voz secreta que aprova ou desaprova as nossas ações. Um desafio.
Daí, a pergunta: Até que ponto, ao achincalhar alguém por ser de alguma forma diferente de nós, temos consultado a consciência, indagado de nossa sinceridade? Até onde, ao demolir-lhe o ânimo com uma expressão de desprezo, estamos dando curso à descoberta triste de nossa própria inferioridade? Até que limite estamos procurando mistificar o nosso sentimento de fracasso?
Com que força estamos abrindo as comportas de nossa ira enjaulada?
Para refletir, lembro a historinha do pernilongo que, à noite, esvoaçando em torno da cama, zumbe aos nossos ouvidos, não nos deixando dormir. Irritados, no escuro, tentamos matá-lo a qualquer preço. Ele foge. Até que, na expansão maior de nossa cólera, a um zunido mais irritante, próximo dos nossos ouvidos, tentando destruí-lo, damos um tapa violento, esbofeteando o nosso próprio rosto.
Rubem Costa, 102 anos, presidente emérito da Academia Campinense de Letras, é um dos jornalistas mais longevos do Brasil. Continua produzindo suas crônicas e mantém-se ativo intelectualmente.