Considerando que a cada geração compete a preparação de novos seres humanos para viver em sociedade, parece-me válido tecer algumas considerações relativas à configuração dos grandes aglomerados urbanos contemporâneos e do que será desejável acontecer para que eles venham a ser espaços de menor violência, maior justiça e sensibilidade para os futuros cidadãos.
Obviamente, minha reflexão não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas tão somente de abrir uma janela por onde se possa olhar o horizonte à distância, sem as emoções fortes que nos dominam quando tudo nos assusta.
Nos dias de hoje, somente 2% da população mundial mora e trabalha na zona rural, aproximadamente. Os 98% restantes estão habitando as cidades e, como seria de se esperar, trazendo um sem-número de novos problemas a serem resolvidos pelas administrações municipais no tocante à habitação, à saúde, ao trabalho, à educação, aos transportes, ao lazer, à segurança e outros.
Melancólicos, estamos sempre falando de um tempo em que as cidades abrigavam e protegiam verdadeiramente seus habitantes, em que as relações não eram tão impessoais e onde as crianças podiam crescer em liberdade e segurança. Nostálgicos, sentimo-nos como se houvéssemos perdido definitivamente o Paraíso e que somente nos restasse espiar as penas neste Inferno urbano, procurando desesperadamente pelos culpados de nosso desassossego.
A vida, como o universo, é dinâmica e sua única constante é a mudança. Nosso mister é buscar sempre, com serenidade e determinação, a solução para os novos desafios. Essa tarefa exige mente aberta, ausência de preconceitos e, principalmente, um olhar complacente e generoso sobre cada nova configuração que se instala, na qual seres humanos carentes e inseguros se encontram, se tocam, se percebem, procurando segurança, aconchego, respeito e sobretudo o direito de sonhar um futuro.
Nas urbes contemporâneas não coexistem mais somente aqueles que se conhecem há séculos, através de seus antepassados ou de suas próprias pegadas impressas nas lajes do passeio público. Encontram-se milhares de pessoas que para as cidades vieram à procura de sustento, ou pela atração natural que a novidade exerce sobre o espírito humano e mesmo em busca de melhores empregos e conforto. Mas, o trabalho exaustivo, as dificuldades de locomoção e informação, na maioria das vezes, os tornam prisioneiros de um espaço restrito, no qual suas próprias trajetórias pessoais não são recuperadas, bem como as
tradições culturais que lhes deram forma e conteúdo em outras regiões de origem. Não bastando isto, a TV e o celular veiculam informações para transformá-lo em mero consumidor, mais do que cidadão.
São os órfãos culturais, eu diria, que sem referências que os identifiquem, que os situem na nova sociedade onde, na maioria das vezes, têm somente um magro salário e solidão, tornam-se presas fáceis do proselitismo, seja este de natureza religiosa, política ou criminosa. Estas organizações, infelizmente, são as que acabam lhes dando o significado social de que necessitam para permanecer num espaço que lhes é estranho.
O administrador de um grande centro urbano preocupado com a mudança das relações na cidade e toda a população angustiada pela violência que nela campeia precisam atentar para o fato de que a primeira marginalização social é Cultural. Esta percepção deverá propiciar uma mudança de postura e de práticas relativamente ao Patrimônio Cultural da Cidade, o qual vai muito além de monumentos arquitetônicos, expressões artísticas, arquivos, acervos museológicos, bens imateriais e mesmo vegetais, sendo algo plural e diversificado, um rico mosaico formado por heranças múltiplas, de segmentos populacionais diversos distribuídos pelos bairros.
Tais heranças, se devidamente resgatadas, preservadas e valorizadas, deverão ser difundidas em estruturas adequadas de baixo custo que permitirão o resgate das identidades individuais e grupais, promovendo entre outros, a diminuição da violência, a redescoberta da vida comunitária e do papel de cada um na construção do bem comum.
Sabe-se que a CULTURA permeia toda a existência humana e é ela que, de formas variadas e em todas as direções, consolida como num caleidoscópio a vida inteligente do Homem, sua capacidade de estabelecer relações, de transferir experiências, de construir sempre um novo futuro. Através do ensino formal os indivíduos têm contato com recortes específicos da cultura de uma sociedade, mas não com ela em sua totalidade.
Assim sendo, as grandes e modernas aglomerações humanas necessitam de Espaços Estruturados de Preservação Patrimonial como de Escolas, onde os segmentos da população tenham possibilidades de recuperar suas memórias individuais e coletivas, mirarem-se como num espelho e, em se compreendendo melhor, projetarem de forma coletiva o futuro.
Existem hoje, em vários países, ricas experiências nesta direção. Um exemplo disso é o chamado ECONOMUSEU ou MUSEU-EMPRESA – economia e museologia associados, um local privilegiado para a preservação, documentação, exposição e comercialização da cultura artesanal de segmentos populacionais menos favorecidos, com vista ao resgate da autoestima desses sujeitos, à percepção mais acurada de suas próprias raízes étnicas, à compreensão de seus papeis enquanto agentes histórico-culturais e seres construtores da cultura de sua sociedade. No Canadá tais unidades têm recuperado conhecimentos seculares de populações nativas cujos descendentes vivem em grandes centros urbanos, sob a direção delas próprias e com a assessoria técnica de especialistas, possibilitando uma valorização social dos sujeitos, com conseqüente melhoria nas relações sociais.
Diga-se de passagem, que os ECONOMUSEUS por serem espaços de recuperação e comercialização das tradições culturais de vários segmentos populacionais, e em sua própria concepção incluírem uma área de visualização do processo de produção, tornam-se excelentes atrativos do Turismo Cultural, sendo que naquele país o empresariado local, de forma solitária ou em associação com o poder público, investe significativamente no setor.
O chamado MUSEU COMUNITÁRIO corresponde a um outro espaço de preservação da memória local onde os segmentos populacionais podem de maneira autônoma, mas orientada tecnicamente, organizar o acervo e fazerem uma nova leitura de suas trajetórias, de suas criações, das soluções encontradas para os desafios enfrentados, das crenças professadas, dos sonhos perseguidos realizados ou abandonados. São, também, estruturados para a autogestão e como o primeiro tipo promovem o Turismo Cultural Sustentável, no sentido em que têm como uma das metas a preservação da paisagem e dos vestígios históricos – sociais, que justificam suas próprias existências.
Fazem parte, tais espaços de preservação patrimonial, dos roteiros elaborados pelas operadoras de turismo daqueles países e das programações de visitas escolares (estudo do meio) de suas próprias Secretarias de Educação, fato este que por si só, reforça o orgulho do grupo que os mantêm em funcionamento .
Sem sombra de dúvida, tais projetos abrem possibilidades para que um verdadeiro Cidadão surja no cenário urbano contemporâneo, capaz de reordenar a vida nesta transitória Torre de Babel que desafia nossa razão e sensibilidade neste início de século, fazendo surgir um novo Homem consciente de sua importância na vida da cidade e do mundo e, por tal motivo, avesso à destruição e à violência.
Acredito não haver obstáculo que impeça o Ser Humano que sabe quem é e se respeita, de chegar aonde pretende. É esta a força interior que remove montanhas e que mantém a fantástica aventura humana!
Regina Márcia M. Tavares é antropóloga, professora universitária aposentada, conselheira, consultora, membro da ACL, do IHGCC e outros – [email protected] – www.reginamarciacultura.com.br