Se eu não fosse profissional que escreve sobre cinema e soubesse o conteúdo de Bela Vingança (Promising Young Woman, EUA/ Reino Unido, 1h54 min.), da britânica Emerald Fennell, não o assistiria porque a temática (composta de mortes e cenas não, exatamente, edificantes), me causa mal-estar. Mas, desde já, tentarei abstrair a questão pessoal ao dizer que o filme é bom. Muito bom.
Meu interesse por ele nasceu do fato de a diretora ter ganhado o Oscar de roteiro original – uma das categorias mais difíceis. E Emerald se sai muito bem no intento de narrar a história de ex-estudante de medicina, Cassie (Carey Mulligan), que abandonou o curso depois de episódio trágico envolvendo a melhor amiga dela, chamada Nina.

Agora, funcionária de lanchonete, ela passa o tempo livre se fingindo de bêbada em bares noturnos a fim de seduzir rapazes que se aproximam para ajudá-la – na verdade estão interessados no sexo que ela possa oferecer. Longe de ser somente uma garota frustrada tentando preencher o vazio da vida, Cassie está colocando em prática um meticuloso plano de acerto de contas.
Há vários elementos que demonstram a qualidade de Bela Vingança. A começar do ótimo roteiro. Por ser suspense, é necessário guardar fichas, esconder fatos, não explicar muito. Assim, o espectador se sente um tanto perdido no começo. Também não entende, de cara, a razão de Cassie levar uma vida tão autodestrutiva, assim como fica confuso com o comportamento dela.
A história vai sendo resolvida aos poucos e há um momento em que temos a impressão que o filme terminou. Então, Emerald saca uma carta preciosa e executa virada espetacular. E entramos de volta mergulhados na história.
O roteiro, independentemente de que o escreveu, é bom, mas torna-se mais significativo que tenha sido mulher neste ano em que o Oscar assumiu a diversidade nas premiações: negros, mulheres, idosos, imigrantes e pessoas com deficiência. Nem precisaria contar história sexista, mas Emerald Femmell aproveita a chance para colocar os homens (ou quase todos) nos papéis de vilões – como há inúmeras vilãs em roteiros masculinos.
Veja o trailer oficial neste link https://www.youtube.com/watch?v=51RIAEha23s
E, ademais, o elemento detonador da história é um estupro, o mais pérfido dos crimes porque é imposto, invasivo, indigno, violento, se baseia na força, deixa sequelas imensuráveis e porque a intenção e a execução partem do homem e, portanto, se sustenta no desejo unilateral masculino. O fato de ter escrito o roteiro ajuda a diretora. Assim, ela tem o filme nas mãos e domínio amplo de onde quer chegar. E desenvolve um olhar particularmente feminino no modo de conduzir os passos da protagonista, pois não se trata de vingança propriamente dita, como indica o título brasileiro, mas da busca por revelar os culpados.
E fica claro o esforço de Esmerald em tomar partido de sua anti-heroína porque, em dado momento, o espectador começa a torcer para a personagem atingir o objetivo dela. Cassie tem personalidade depressiva, faz da obsessão de revelar o crime o único horizonte da vida e pouco se importa com o afeto dos pais – a única pessoa em quem confia é uma colega de trabalho.

Com rosto delicado e postura tímida (detalhes que complementam a figura insidiosa com aparência inofensiva), Carey Mulligan incorpora a autocomiseração e o sofrimento de Cassie com determinação. Nos bons trabalhos anteriores da atriz, ela sobressaiu pela sutiliza da interpretação. Mas, sem perder esta que continua ser a principal característica do trabalho dela, Carey usa a arma da agressividade expressa do rosto, na postura do corpo, no modo de falar e nos caminhos que busca a fim de mergulhar na alma de Cassie. Tal entrega compensou porque foi indicada ao Oscar. Só não ganhou porque a concorrência era muito grande.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema