O emblemático Maio de 1968 não sai da cabeça dos franceses. De tempos em tempos, filmes e outros meios trazem à memória a revolta dos estudantes parisienses que modificou conceitos de uma época. A Boa Esposa (La Bonne Épouse, França/Bélgica, 2020, 109 min.), de Martin Provost, retoma o tema de modo um tanto exagerado, mas perdoável por ser comédia – com traços de drama. Mulheres dominam a cena; dois ou três homens que surgem são meros coadjuvantes.
O tom de comédia se vê logo de início. No lugar de meninas grávidas escondidas pelas próprias famílias, como ocorre em filmes dramáticos como Philomena (Stephen Frears, 2013), para ficar em um exemplo, adolescentes são levadas a um local a fim de se formarem ótimas esposas. É com esse material que nasce a trama.
Quem dirige a instituição é o casal Robert (François Berléand) e Paulette van der Beck (Juliette Binoche). A morte hilária dele, devorando osso de coelho, iguaria preparada pela dedicada irmã Gilberte (Yolande Moreau), serve como bom exemplo da subserviência feminina: casado, Robert ainda precisa dos serviços da irmã. Com a morte do personagem, a história toma novo rumo.
Bom que seja assim porque no referido ato se vê repetições exaustivas de imposição de autoridade sobre as garotas (em geral, vindas de famílias pobres). Tudo é proibido, regrado, controlado. E tome aulas de como preparar frango ou tecer bordados ou ser atenciosa com o marido.
No segundo ato, o roteiro de Séverine Werba e do próprio diretor se abre para novas possibilidades, pois Paulette descobre que a empresa está cheia de dívidas e, ao recorrer a um banco, depara com o grande amor do passado na figura do gerente André (Edouard Baer). Então, de história machista na qual o homem se impõe sobre a mulher – como rezava (ainda reza) a tradição, ocorre o equilíbrio. As mulheres esquecerão como se deve preparar pratos ao gosto do marido, assumirão o protagonismo da história e ainda se permitirão amar e serem amadas – ao contrário do casamento formal que Paulette mantinha com Robert. E, no caso do antigo amor, André passará pelo teste de como se prepara um chucrute antes de ser aceito por Paulette.
Veja o trailer do filme no link https://www.youtube.com/watch?v=uC13o4ezwLA
Estamos no final dos anos 1960, especificamente em maio de 1968 e as ruas de Paris estão tomadas pelas revoltas estudantes, enquanto as meninas viajam para a mesma cidade a fim de participar de uma competição gastronômica em canal de TV – a cena do programa de TV que mostra as meninas que vão competir é engraçadíssima. Eis a chance de liberdade: enorme engarrafamento muda o foco da caravana.
A coreografia ao final do filme tem o caráter teatral próprio do final daquela década de emitir ‘mensagens’ao espectador, seja política, social ou comportamental. A referência faz sentido, mesmo que destoe da narrativa que o filme assumiu desde o início.
O diretor talvez queira dizer que mudaram os costumes, mudou a história e o filme virou quase musical. E, se em Paris, há reivindicação política que envolveu até o presidente francês, o general De Gaulle, A Boa Esposa aproveita a chance para reivindicar o legítimo lugar da mulher na sociedade, hoje, felizmente, realidade, a despeito de o velho machismo tentar (ainda) resistir.
E se o protagonismo é feminino, a grande Juliette Binoche se encarrega de, uma vez mais, mostrar o talento dela. Não apenas se transforma da mulher certinha que vestia taller e passa a usar a masculina calça, como expõe a alegria de atuar.
Na referida dança, ela parece garota; portanto, a transformação também foi interna – lembra Meryl Streep em Mamma Mia (Phyllida Lloyd, 2008), que, aos 59 anos, canta, dança e nada. Tal entrega valoriza o filme e a carreira de Juliette. Detalhe: ela tem 57 anos.
Disponível em breve nas plataformas de streaming
João Nunes é jornalista e crítico de cinema