O vilão Phil (Benedict Cumberbatch) brilha na tela e no cartaz do filme, mas quem conta a história em “Ataque dos Cães” (The Power of the Dog, UK, Austrália, EUA, Canadá e Nova Zelândia, 2021, 136 min.), da neozelandesa Jane Campion, é Peter, o australiano Kodi Smit-McPhee. A trama descrita no livro homônimo de Thomas Savage, que o próprio roteirizou junto com a diretora, é a luta por espaço na fazenda dos irmãos Phil e Georges (Jesse Plemons).
Georges abre as portas para Rose (Kirsten Dunst) e, sensível, chora porque não mais viverá sozinho nos confins de Montana, em 1925, se casam, ele a leva (com o filho) para morar na fazenda e lhe dá um piano de presente.
O misógino Phil não se conforma, trata Rose com desprezo e Peter com zombaria.
Quem ele gostaria que estivesse por perto era o “mais que amigo” Bronco Henry, morto que vive nas memórias relatadas aos peões. Rose se conforma, mas, para Peter, Phil é quem está sobrando.
Logo na abertura, o narrador Peter diz uma frase emblemática, indicativa do início e do desfecho da história: “Depois da morte do meu pai, eu só queria que minha mãe fosse feliz. E que homem seria eu se não a defendesse, não a salvasse”? Como se nota, ele se impõe pesada responsabilidade e tal ato o define como pessoa.
No cinema, posturas similares fazem parte da cartilha dos heróis, sujeitos imponentes que miram horizontes distantes e são corajosos, valentes, impolutos, determinados e, claro, bonitos. Seguindo tal cartilha, Peter está mais anti-herói.
Desprovido de beleza padrão, o corpo magro e desengonçado revela fragilidade e desamparo. Em contraste com a rudeza da fazenda de gado, ele confecciona flores que adornam o restaurante da mãe Rose. Phil (e seus viris vaqueiros) debocha do “florzinha” e se dispõe a fazer dele um “homem”.
Para quem quer ser médico (igual ao pai), delicadeza pode ser ótima parceira no manuseio do bisturi, prática que Peter exercita usando dóceis coelhos. E não confunda fragilidade com falta de habilidade, tais como astúcia, discrição, paciência e saber jogar o jogo – Peter possui todas elas.
Ele só precisa deixar o inimigo crer que sabe mais, estar disponível para se tornar bruto e montar cavalos ariscos e, feito discípulo, ser aliado místico e afirmar que vê bichos na colina. “Vi um cão quando cheguei aqui”, citação de um salmo, lembrando que Phil foi grosseiro com o cowboy insensível que nada conseguia enxergar.
Jane Campion dirige história hostil com sobriedade. As belas e perigosas colinas, esconderijos de bichos e moradia da solidão, assistem impassíveis à infelicidade de Phil, à tristeza imensa de Rose, aos silêncios melancólicos de Georges e aos medos de Peter. A música de Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead, acompanha a ambientação e cria melodias tensas, insólitas e atraentes.
A fotografia de Ari Wegner mimetiza a desarmonia nas luzes indiretas dos ambientes fechados e nas cores esmaecidas dos locais abertos. Há um momento de brilho, imagem inesquecível de Peter com o cão de Phil. Luz intensa, claridade amarelecida que reverbera por toda tela.
Benedict Cumberbatch, excelente, assume convicto ser homem mau implacável. A Jesse Plemons coube a difícil tarefa de se conter e falar pouco, mas demonstrar emoções fortes, como o choro que o livrará da solidão.
Kirsten Dunst, tímida, deposita na linguagem do corpo a força da interpretação, no caminhar trôpego, no balançar inseguro das pernas, nas mãos trêmulas ante o piano. Em cena brilhante, feito filhote de pássaro ameaçado por predador, ela se debate. Depois de escapar da morte, recatada, sorve uma bebida como se tomasse veneno à espera de novo ataque.
Kodi Smit-McPhee também usa o corpo como expressão e o faz de modo preciso ao compor um Peter medroso e, ao mesmo tempo, cheio de coragem, dois sentimentos presentes na frase dele no início, como se dissesse: os fortes nem sempre são os viris, fracos nem sempre são frágeis e um homem se mede pelo caráter – constatações irretocáveis.
Contudo, a diretora ignora questão ética inegociável – o que não significa concordância nem que não haverá consequências. O referido salmo diz: “Senhor, livra minha vida do ataque dos cães”. Trata-se de oração na qual Davi reconhece que livramento não é atribuição dele. Ao filme, basta ao homem ter caráter. Na vida, apenas caráter não é suficiente.
Após ganhar o Globo de Ouro, “Ataque dos Cães” tornou-se favorito na disputa do Oscar 2022. Os indicados serão divulgados em 8 de fevereiro.
Filme disponível na plataforma de streaming da Netflix
João Nunes é jornalista e crítico de cinema