Em tempos de fake news e das variantes delas, que vão da má-fé à precariedade com a qual amadores “exercem a profissão” nos dias de hoje, constitui-se enorme prazer assistir a “Ela Disse” (She Said, drama, EUA, 2022, 129 min.) e deparar com verdadeira aula de jornalismo investigativo e, ao mesmo, ver cinema de qualidade.
Um filme que se debruça sobre bastidores dos assédios a atrizes de Hollywood e funcionárias da Miramax perpetrada pelo produtor Harvey Weinstein e detona o processo contra ele, culminando com a condenação a 23 anos de prisão, só poderia ser realizado por mulheres.
A direção é de Maria Schrader, o roteiro foi escrito por Rebecca Lenkiewicz, Natasha Braier se encarregou da cinematografia e as protagonistas são Zoe Kazan (Jodi) e Carey Mulligan (Megan).
Não, apenas, para cumprir o princípio do chamado “lugar de fala”, mas porque, ao longo do tempo, a trajetória do cinema foi narrada por homens e a proeminência deles relegou as mulheres a segundo plano.
E, no caso deste filme, o olhar feminino torna-se fundamental para entender os meandros do episódio escabroso.
Além disso, se a direção fosse masculina, o diretor, mesmo sendo de boa vontade, poderia cair na tentação de levar em conta o argumento do advogado de Weinstein de que seu cliente era homem do tempo no qual não havia clareza ou debate sobre consenso sexual e, a partir dessa premissa, ele recomenda que se ressalte não os pecados passados e, sim, a “evolução” masculina nessa área.
No entanto, a falácia do argumento cairia de vez por terra quando se descobrisse que o produtor cometeu crimes de assédio nos anos 1990 e seguiu com eles até meados da segunda década dos 2000, época em que se inicia a investigação do New York Times. Ou seja, pelo menos para Weinstein, não houve evolução alguma.
E vem da mirada feminina da diretora a sensibilidade de, apesar do tema árido para se evocar algum tipo de poética, criar momentos de ternura (o bebê de Megan ao final e o abraço dela em Jodi, ante o choro catártico da colega) e de humanidade (insegurança das duas supondo que não poderiam dar conta do que lhes foi encarregado e culpa por não cumprirem, apenas, o papel de mãe, atribuído às mulheres desde sempre).
De outro lado, ao narrar história tão cara às mulheres, havia o risco de Maria Schrader exacerbar os referidos momentos; afinal, emoções não faltam, especialmente nas sequências envolvendo as personagens alvo dos assédios e que herdaram traumas irremediáveis.
A direção faz o certo: trata cada história em particular com o devido respeito e cerimônia – como deve ser. Para isso, conta com preciosas atuações das protagonistas, em especial, Zoe Kazan.
São dela as performances mais próximas da mistura de mergulho na emoção conjugado com sutileza, como o espanto dela diante dos relatos, o citado choro catártico, o desconcerto no encontro com o marido de uma das atrizes assediadas e a emocionante entrevista com Ashley Judd, interpretando ela mesma.
E causa ótima impressão a beleza e a adequação da trilha sonora de Nicholas Britell. Também a música, em produções do gênero, pode errar o ponto. Contudo, as belas composições entram discretas no filme e, em dado momento, passam a marcar presença positiva de modo decisivo.
Depois de algum tempo, tem-se a impressão de que a história de “Ela Disse” fica maior que o próprio filme, mas, ao final, vê-se encaixe perfeito. Se a contribuição cinematográfica – seguindo o ótimo caminho dos filmes investigativos na história do cinema – é boa, o mesmo se pode dizer da maneira como é mostrado a prática honesta e competente do jornalismo.
Trata-se de trabalho duro, desgastante, perigoso e, claro, compensador. A credibilidade de veículos de comunicação pode ter sofrido queda brutal. Mas o jornalismo não. Nem os profissionais sérios que se doam em busca da tal merecida compensação pessoal, mas, também, estão ávidos para falar e vivenciar a verdade.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
O filme está em cartaz na rede Cinépolis do Galleria Shopping e no Cinemark do Shopping Iguatemi