Nosso cansaço começou muito antes da pandemia do coronavírus. Pesquisa realizada pelo Ibope em 2013, apontou que 98% dos brasileiros se sentem exaustos mental e fisicamente. Em outros países, o índice também é alto. O filósofo Byung-Chul Han, em seu livro Sociedade do Cansaço, lançado há dez anos, antecipou que vivemos numa época de velocidade e esgotamento, onde o sistema de poder vigente valoriza indivíduos inquietos, hiperativos e explorados, mas que apesar de tudo se sentem realizados.
Muitos não se dão conta que se autoexploram. A sociedade do desempenho faz parte do novo normal. Antes da Covid-19 já sofríamos de ansiedade, depressão, insônia e fobias que se intensificaram nos dois últimos anos. Quando o coronavírus apareceu, primeiro sentimos medo, nos isolamos, fizemos de nossa casa um escritório montado às pressas, eliminamos os contatos e nos distanciamos de todos. E quem foi contagiado continua a sentir abatimento e cansaço.
Uma das sequelas do vírus é exatamente a fadiga, mas não uma fadiga qualquer, passageira. É uma exaustão que nos paralisa.
Ainda faltam vacinas para combater o vírus, mas mesmo que tenhamos o suficiente, não haverá o bastante para controlar a depressão e outros problemas que abalam a saúde mental, segundo Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano, docente de Filosofia e Estudos Culturais na Universität der Künste de Berlim, considerado um dos filósofos contemporâneos mais talentosos da atualidade.
Durante a pandemia, Chul Han publicou um artigo no The Nation, depois reproduzido no competente Outras Palavras (https://outraspalavras.net/tag/sociedade-do-cansaco/), com tradução de Simone Paz, onde enfatiza que a Covid-19 é um espelho que reflete nos humanos as crises da sociedade. “Ela torna os sintomas patológicos — que já existiam antes da pandemia — mais visíveis. Um desses sintomas é o cansaço”, escreveu. O autor também tem textos publicados no jornal El País, todos excelentes, vale conferir para entender melhor a sociedade moderna.
Por coincidência, hoje (22) o GNT começa a exibir a série Sociedade do Cansaço, baseada no livro de Byung-Chul Han. A atração discute ansiedade, depressão, insônia e distúrbios alimentares como resultantes desse cenário de exaustão, e debate o que podemos fazer diante desse contexto. O programa terá dez episódios e será exibido toda quarta-feira, às 23h30.
Apesar de ter lançado Sociedade do Cansaço há uma década, Chul Han considera que a compulsão da realização ainda acomete o trabalhador, inclusive nas horas de lazer e até durante o sono (ou falta dele).
Os profissionais pensam que são livres, mas se autoflagelam de tal forma que chegam a colapsar. “O sujeito realizador acredita que é livre, quando na verdade é um escravo. É um escravo absoluto na medida em que se explora voluntariamente, mesmo sem a presença de um senhor”, disse Byung-Chul Han em seu artigo para o The Nation. Para o pensador, sob certo aspecto, o neoliberalismo se baseia na autoflagelação.
Depois de contraírem o vírus, muitas pessoas se sentem arriadas, como se as baterias não carregassem mais, sintomas da síndrome da fadiga crônica. Não têm ânimo para caminhar e precisam parar várias vezes, ofegantes, sem forças para segurar um copo com água. Nessa sociedade cansada também surgiu o corona blues, enfrentado inclusive por crianças. Para a OMS (Organização Mundial da Saúde), o nome mais apropriado é fadiga pandêmica.
Em inglês, blues pode ser traduzido como melancolia. É um estado de tristeza, impaciência e ansiedade proveniente da pandemia. Além de ficarmos trancados em casa, há muito tédio e inquietação. Sem contar a perda de um ente querido.
O pensador Byung-Chul Han comentou que a preocupação e o ócio causam um esgotamento psicológico coletivo. Definiu o coronavírus como “vírus do cansaço”. Em entrevista ao portal de notícias Infobae, explicou que o corona blues também pode ser uma forma de esgotamento. Para ele, a sociedade capitalista em que vivemos propicia o aumento do esgotamento psicológico, físico e emocional.
Preocupados com os boletos no final do mês, os trabalhadores se privam de uma vida de qualidade e passam o mês pagando contas. Dessa forma o cansaço físico e mental se instala numa proporção inimaginável. Reflito sobre isso ao ler nos portais brasileiros que o apresentador Tiago Leifert vai deixar a Globo no final deste ano, no auge da carreira, salário milionário, ninguém entende os motivos.
Não seria uma pausa para essa busca por mais qualidade de vida? A mulher dele, a jornalista Daiana Garbin, também saiu da emissora há alguns anos e parece estar muito feliz. Sorte de quem pode fazer escolhas certeiras aos 40 anos, vida inteira pela frente. Poucos têm esse privilégio, ainda mais no Brasil.
Espelho digital é cruel
A pandemia também revelou que o mundo digital não é assim tão perfeito. Falta abraço, beijo, olho no olho, contato real, presença física. Nunca vivemos um momento tão solitário e desumano como o atual, concorda? Nos últimos tempos, até sexo se faz on-line, pelo fato de ser mais seguro, mas a falta de contato físico muitas vezes leva quem faz a se sentir como um boneco de borracha. Falta emoção, troca, singularidade.
Na sociedade do cansaço e do esgotamento (burnout), ficamos presos, atados, sem liberdade. Pouco lazer, muito cansaço. O filósofo Byung-Chul Han cita ainda os efeitos do narcisismo do Zoom, que fez aumentar a procura por cirurgias estéticas nesse período pandêmico. A tela expõe nossas imperfeições, como rugas, olheiras e manchas.
Fala-se de uma “dismorfia do Zoom”, preocupação excessiva com falhas na aparência física. O espelho digital é cruel, e isso também nos deixa cansados.
Como diz o pensador, “precisamos de um tempo próprio que o sistema produtivo não nos deixa ter; necessitamos de um tempo livre, que significa ficar parado, sem nada produtivo a fazer, mas que não deve ser confundido com um tempo de recuperação para continuar trabalhando; o tempo trabalhado é tempo perdido, não é um tempo para nós”.
Terapia, caminhadas, orações, meditação, retorno às origens, pausa, o que pode nos ajudar? Cada um tem que parar e refletir sobre o que é possível fazer para suavizar a rotina.
Coisas simples ajudam: deixar um bolo na portaria do prédio, como uma amiga querida fez comigo num domingo à tarde, gesto de pura ternura. Também vale trocar livros, indicar bons autores, ter um zap com pessoas muito importantes na vida da gente, enfim, pequenas coisas que nos aproximam das pessoas. Sem exaustão, por favor!
Janete Trevisani é jornalista [email protected]