A história brasileira neste tema começa na década de 80. Vivia-se grande crise sanitária com a pandemia do vírus HIV, à época denominado HTLVIII. Milhares de mortes por transmissão sexual e pela transfusão de sangue contaminado. Muitas ações de impacto foram realizadas para o bloqueio dessas transmissões. Uma delas, apoiada e fomentada por especialistas, foi a proibição da coleta remunerada de plasma existente à época, tanto de forma clandestina como regularmente.
Esse forte movimento foi parar na Constituição de 1988, que dedicou ao tema artigo exclusivo. Caso a Constituição tivesse sido pactuada em outro momento, talvez a questão do sangue e da hemoterapia não tivessem merecido tal destaque. Mortes como a do Henfil e de seu irmão Betinho causaram forte comoção por terem sido ocasionadas por transfusões de componentes ou derivados do sangue contaminado. Esses fatos lançaram luz na questão da hemoterapia, com a vedação do comércio com o sangue.
Um avanço em direitos humanos e civilidade. Isso ensejou o desenvolvimento de um robusto programa público de Hemoterapia, a partir dos hemocentros públicos, ao lado de discussões sobre a busca de autossuficiência em produtos do sangue, componentes ou derivados.
São 40 anos de proteção da vida e do sangue e com o avanço da ciência, que novas e excepcionais soluções tornaram-se realidade, como a produção de fatores de coagulação por recombinação de DNA, dentre outros. O Brasil dispende nos dias de hoje cerca de U$ 500 milhões por ano na compra destes produtos. Essas ações melhoraram substancialmente a assistência a pacientes com hemofilia. O SUS garante a essas pessoas, de modo gratuito, tratamento e medicamentos necessários.
A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia, Hemobrás, com sede em Pernambuco, possui duas fábricas, uma de processamento de plasma e outra para a produção de fator VIII recombinante (exclusivo para a hemofilia). Foram investidos mais de dois bilhões de reais ao longo desses anos. A Hemobrás tem capacidade instalada para processar até 650 mil litros de plasma. Hoje, o Brasil capta cerca de 580 mil litros de plasma (público e privado), mas apenas 1/3 desse plasma está qualificado industrialmente, ou seja 200 mil.
A busca da autossuficiência e de mais plasma qualificado para a indústria requer melhoria de todos os processos de coleta, fracionamento e armazenamento do plasma e não tão somente de coletar plasma. Plasma sem qualidade não servirá para uso humano ou para o processamento industrial.
A necessidade do SUS de três toneladas de plasma, exige seja captado 600 mil litros qualificados. Atualmente capta-se 200 mil litros de plasma qualificado. É preciso prioritariamente investir na hemorrede para ter capacidade de qualificar o plasma coletado. Assim sendo, é necessário que não se “venda” sangue ou plasma, mas sim que haja investimento público na qualificação dos hemocentros e serviços de hemoterapia públicos e privados.
Não é adequado andar para trás em direitos humanos e na busca da diminuição da desigualdade social, mudando a regra atual de “não venda” do plasma/sangue humano, grande conquista civilizatória que permitiu sanear uma das áreas mais difíceis da saúde em passado recente. Importante dizer ainda que os hemocentros públicos de forma geral têm uma estrutura robusta e são muito qualificados, mas de modo insuficiente, faltando-lhe investimento público.
O PAC do Governo Federal, recentemente apresentado à sociedade, prevê a aplicação de 100 milhões de reais na cadeia de produção de plasma nos próximos dois anos e isso é muito relevante para o tão almejado alcance de autossuficiência em produção industrial da saúde com melhoria considerável dos serviços do SUS.
Agora que o país caminha para alcançar essa autossuficiência, tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição n° 10, de 2022, que propõe alterar o artigo 199, § 4°, que veda todo o tipo de comercialização com partes do corpo humano, órgãos e tecidos, no qual se incluiu como tecido humano, o sangue. Importante lembrar a relevância do controle público e das políticas públicas sobre esse tema ante o recente fato que foi o transplante do Faustão, figura pública nacional, que trouxe à luz nas mídias sociais o excelente programa do SUS de transplante que caminha ao lado do programa de sangue.
A proposta inicial do Senador Nelsinho Trad era possibilitar que o setor privado participasse, em igualdade de condições com o Poder Público, do processamento do plasma, um dos componentes do sangue, para a produção de hemoderivados tais como os fatores VIII e IX, o complexo protrombínico, o fator de von Willebrand, a albumina, as imunoglobulinas etc. Dentre os hemoderivados, no momento, até por que não pode ser substituído por produtos produzidos por engenharia genética, o mais crítico é a imunoglobulina que o Brasil vem comprando 1.7 a 2 toneladas (01 frasco tem 5 gramas).
Devido à pandemia do SarsCov2 (COVID19), que durou cerca de três anos, e a grande instabilidade em todo o mercado em razão das guerras que consomem grandes quantidades de produtos derivados do sangue, há falta no mundo e, assim, os preços disparam e a disponibilidade se reduz e o interesse em sua industrialização cresce.
O debate que se instalou no Congresso e precisa ser aberto à sociedade, foi sobre a necessidade de o poder público ter primazia no processamento do plasma, com a participação suplementar do setor privado quando houver plasma excedente em relação à capacidade pública.
A PEC seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, foi apresentado pela sua relatora, Senadora Daniella Ribeiro, projeto substitutivo, que não somente encampou o processamento do plasma pelo setor privado em igualdade de condições ao poder público, mas possibilitou ainda a venda do plasma humano pelos seus doadores, incentivando o comércio com o próprio sangue ao invés do desenvolvimento do altruísmo e da solidariedade que marcam uma sociedade, elevando o seu nível civilizatório e fazendo nascer o importante sentimento de pertencimento comunitário, que pauta as sociedades justas e igualitárias.
A justificativa para a venda do próprio sangue pelas pessoas, é que há pouco plasma no país, ao mesmo tempo em que se alega que o plasma é suficiente, mas tem sido desperdiçado pelo poder público.
Ou não há plasma suficiente ou há plasma suficiente. Afirmar, como consta no relatório que acompanha a PEC substitutiva, de que vender plasma não é a mesma coisa que vender sangue, cabe esclarecer que o sangue é composto de duas partes fundamentais: uma liquida, o plasma (que contém os fatores de coagulação, albumina e imunoglobulinas) e uma celular onde estão os glóbulos vermelhos, os brancos e as plaquetas.
O plasma, um de seus componentes, que, pela tecnologia da plasmaférese pode, no momento da retirada do sangue, já ser separado. Primeira observação é que a tecnologia da plasmaferese para fins industriais é cara e a hemorrede brasileira ainda não a adota e antes de investir recursos nessa tecnologia, há outras necessidades mais urgentes.
Os hemocentros e os serviços de hemoterapia precisam de modo relevante de investimentos para atender necessidades mais urgentes, como ampliar a rede de coleta, o fracionamento e a aquisição de câmaras frias para o armazenamento do plasma. É fundamental esclarecer a sociedade e o Congresso Nacional sobre a necessidade de se qualificar o plasma para uso industrial, que exige armazenamento adequado para que o Brasil atinja a meta de ter 600 mil litros de plasma por ano. E isso não tem a ver com vender sangue/plasma, mas sim com investimentos públicos na hemorrede.
É preciso ampliar no país a capacidade de coleta e armazenamento de plasma para atender a indústria, sem causar um risco de desabastecimento de outros produtos do sangue para fins terapêuticos, clínicos e cirúrgicos.
Este debate deve ser constante. Essa PEC é extemporânea e inadequada trazendo grandes riscos ao sistema e está na contramão do que preconiza Organização Mundial de Saúde (OMS) que é contra a venda de sangue/plasma e certamente aprofundará as desigualdades sociais brasileiras.
É preciso ampliar o leque dessa discussão da autossuficiência brasileira, desde que não se busque soluções simplistas, como a venda do sangue quando a questão é muito mais complexa. É preciso priorizar o sistema de sangue, não só o do plasma, mas de todos os outros produtos derivados necessários à sociedade e ao SUS.
O sangue é um bem público de nossa sociedade, que hoje e sempre terá grande valor. A sociedade brasileira é solidária e altruísta e saberá encontrar soluções aos problemas de saúde. O importante é encontrar todos juntos as melhores soluções, sem retroceder a um passado que todos gostariam de esquecer.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.
Lenir Santos é advogada, especialista em direito sanitário, doutora em saúde pública, professora colaboradora da Unicamp, departamento de saúde coletiva e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA).