Em março de 2021, período em que havia deixado a Secretaria de Saúde de Campinas há pouco tempo, fiz uma análise sobre como “O mundo se negligenciou com a Covid-19” e manifestei meu inconformismo com os erros desde o retardo da decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e todos os desacertos e descaminhos deste enfrentamento no Brasil. Certamente, apesar de tudo e principalmente pela aderência da população às ações não farmacológicas como o distanciamento social, cuidados higiênicos e a utilização das máscaras bem como a extraordinária proteção das vacinas, pudemos chegar neste momento com razoável segurança e um retorno cuidadoso (pelo menos deveria ser) ao “novo normal”.
Não podemos perder de vista os impressionantes números desta pandemia mundial: 510 milhões de casos, com mais de 6,25 milhões de mortes com coeficiente de letalidade de 1,2% na somatória de todos os países.
Lembrar que estes números são subestimados, tanto em relação aos casos como as mortes. Isto já foi alvo de publicações científicas em revistas de alto impacto e manifestação explícita da Organização Mundial da Saúde (OMS) há poucos dias demostrando que pode haver um número elevado e não desprezível tanto de casos como de mortes em muitos países, inclusive no Brasil, não reportados e, portanto, não contabilizados.
Os Estados Unidos da América (EUA), em dados oficiais divulgados pela Universidade Americana Johns Hopkins, estão chegando à cifra impressionante de mais de 80 milhões de casos com 1 milhão de mortes, seguidos do Brasil com mais de 30 milhões de casos e 662 mil mortes, oficialmente reportados.
O Brasil tem o coeficiente de letalidade 2 vezes superior à média mundial. Isto pode ser real, mas também pode ser relacionado à baixa taxa de testagem no País, com menor número de diagnósticos, o que aumenta o percentual de mortes em relação ao total de casos.
Além deste quadro dramático, vemos que o processo de vacinação dos povos através do mundo é muito desigual e uma parcela significante de seres humanos não foi e, possivelmente, não será vacinada caso seja mantida a política atual de aquisição e distribuição de vacinas. A África tem menos de 10% de sua população vacinada. O percentual de vacinados no Oriente, em muitos países, não chegou a 50%. A Rússia, hoje envolvida em uma guerra incompreensível, vacinou apenas 50% da população. Assim, poderíamos citar muitos e muitos países onde a situação não é confortável.
Este fato gera a possibilidade de aparecimento de novas variantes com comportamentos biológicos e clínicos imprevisíveis. Além disto, temos números altamente preocupantes em países do Hemisfério Norte com recrudescimento de casos e manutenção de mortes ainda em nível elevado. Novamente, usando dados dos EUA, houve um crescimento de 52% dos casos nas últimas duas semanas (cerca de 50 mil/dia) com manutenção de mortes em torno de 400/dia.
A China saiu de números muito baixo de casos e mortes e chegou a mais de 25 mil casos/dia com número crescente de mortes.
Vários países da Europa, Japão etc.… mantêm números elevados de casos, a maioria da variante Ômicron. Dados consolidados de vacinação mostram que aproximadamente 2/3 da população mundial está vacinada com pelo menos uma dose, mas 1/3, isto é, cerca de 3 bilhões de pessoas não receberam ao menos a primeira dose de vacina.
O Brasil está em 25º lugar quando se calcula o percentual da população vacinada com pelo menos uma dose de uma das vacinas disponíveis. Temos ainda cerca de 15 mil novos casos de Covid-19 por dia com cerca de 100 mortes diárias na média quinzenal. É como se caísse um avião de médio porte todos os dias.
Pois bem, foi neste ambiente que o Ministério da Saúde (MS) decretou o fim da emergência sanitária em nosso país, sem que houvessem amplas análises, reflexões e discussões sobre os riscos e benefícios desta medida.
Sabemos que a OMS não cogita em espaço de tempo que poderíamos calcular ou observar, finalizar a pandemia. Devo lembrar ainda,que “nós somos eles amanhã”. Sem levar em conta todos os aspectos de caráter administrativo e logístico desta decisão com piora de nossa capacidade de enfrentamento, passamos para a nossa sociedade uma sensação de segurança, difícil de assegurar. É claro que evoluímos e estamos felizes por isso. Mas, não podemos ser negligentes ou imprudentes.
Esta pandemia já nos causou muita dor e sofrimento e já nos pregou grandes e desagradáveis surpresas em sua evolução natural.
Aprendi que em saúde pública que devemos ter sempre o princípio da prudência e da responsabilidade para tomar qualquer decisão. Todas as vezes que abrimos mão destes princípios, temos que atuar em outros níveis com maiores riscos e custos, sejam econômicos ou, o que é pior, de agravos e perda de vidas. Decisões açodadas e cuja motivação não seja a da preservação do bem-estar e saúde da população devem ser criticadas e condenadas. Ainda há tempo do MS voltar atrás e ter maior tempo de discussão, observação e maturação das informações, não só do que está ocorrendo em nosso meio, mas observar o que ainda está ocorrendo em todo o mundo.
Em nosso meio, devemos estar atentos e obedientes às nossas autoridades sanitárias. Elas já demonstraram sobejamente, serem competentes e compromissados com o bem-estar e segurança de nossa comunidade. Vamos nos manter atentos e vigilantes, protegendo os vulneráveis e aos movimentos epidemiológicos que são os balizadores únicos das decisões adequadas e consequentes a serem tomadas.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020