A demência senil, a morte e mesmo o suicídio em decorrência de aposentadoria tem relação direta com aquilo que, em Neuropsiquiatria Analítica, é chamado de “roteiro existencial”. Somos, enquanto entes conscientes – do entorno e de nós mesmos – resultado da inter-relação, isto é, só existe “eu” por causa do “eu outro”, da inter-relação de “eus”.
Quando a “linearidade do roteiro existencial” é afetada abruptamente, impossibilita que a pessoa “desempenhe bem o seu papel no palco da vida”, e as conexões neurais, que haviam sido construídas por causa dessa “linearidade” e para manutenção dela, começam a se desfazer. Ao contrário do que se costuma pensar, memórias existem não para serem, simplesmente, memórias, mas para servir de “ferramentas” que possibilitem a construção de “atualidades” e de “perspectivas”.
Nossas memórias se assemelham à caixa de ferramentas de um trabalhador, em que as ferramentas ficam dispostas, em uma espécie de “utilidade passiva”, ou “passividade útil”, que é o “estado de espera”, até que a necessidade cá fora surja e, o trabalhador, abrindo-a, procure e encontre as ferramentas certas para a utilização no dado momento.
Memória não é algo separado do raciocínio, mas um “raciocínio em stand by”, isto é, uma parte inerente do próprio raciocínio. Por mais absurdo que pareça, um livro se deteriora muito mais pela falta de utilização do que pela utilização. Se é deixado fechado, na estante ou em algum lugar qualquer, com o tempo, por não ter arejadas as suas páginas e toda a sua constituição, começa a acumular fungos, traças, umidade…, e logo os textos vão se apagando, até perderem a razão de ser.
Somos como os livros… A mente humana não é um órgão em alguma parte do nosso corpo, mas uma “soma multifuncional de todas as partes na relação com meio”; somos uma “história sendo escrita e lida pela e na inter-relação com outras histórias”. Se “o livro que somos”, é deixado em algum canto, sem que, vez e outra, seja lido, o texto vai se apagando…, e o que nele se dizia já não poderá ser lido se, após tanto tempo, alguém resolver pegá-lo e paginá-lo, para conhecer suas histórias, seus conceitos… É preciso “reenscrever, de um modo um tanto diferente, nas páginas que, com o tempo, o texto vai se apagando, para reconstruir a linearidade contextual.
No “livro que somos”, o importante não é a manutenção do contexto exato; novas histórias podem ser escritas nas partes apagadas ou borradas, a partir do que ainda pode, nele, ser lido, daquilo que há tempos foi escrito.
Não há remédio tão poderoso para evitar ou diminuir exponencialmente a demência senil e o suicídio ou morte por aposentadoria do que a “reestruturação da linearidade no roteiro existencial”. Com o perpassar dos anos, pessoas que amamos e que nos amam, morrem… São como “peças destruídas, de um jogo de quebra-cabeças”.
Para que serve, agora, o jogo, se tantas peças sem as quais não é possível completar a figura, foram perdidas, destruídas? Deste modo, as conexões neurais vão se desfazendo, “ao passo que o sentido da história contada no livro que somos vai se desfazendo, quando vai se apagando, no texto, conexões, os tangenciamentos com o antes e o depois”.
A perda de “linearidade no roteiro existencial” acarreta profunda crise de identidade _pois somos contexto social na temporalidade_ e dessa crise de identidade, desse não mais saber quem se é, ou desse “ser que não mais é”, embora esteja, como um insuportável alienígena, “hospedado na casca orgânica” que nos tornamos, advém depressão, irritabilidade ou apatita, e outros males, que, infelizmente, não discernidos pelos médicos e demais terapeutas, são, “como soldados inimigos, bombardeados quimicamente, sem que sejam, efetivamente, atingidos, e para piorar, o terreno orgânico, com todos os seus bens, em grande parte é destruído por esse desesperado e estúpido ataque”.
Somente uma “reestruturação da linearidade existencial” fará que, com o avançar da idade, tenhamos boa saúde, alegria…, qualidade de vida! Faz-se necessário mais amor aos que estão, explicitamente, avançando em dias, “aproximando-se das últimas páginas do livro da própria existência”. Faz-se necessário novos “arranjos existenciais”, para que “o livro continue interessante, sendo lido e relido constantemente”.
Deve-se parar com essa coisa de “isso ou aquilo não ser mais para tal idade”. A senilidade precisa abrir-se a todas as possibilidades, desde as mais simples e pudicas às mais complexas e desvairadas, “impróprias para menores de 18 anos”! Por mais absurdo que pareça, com o avançar da idade é preciso resgatar, o máximo possível, as “insanidades da adolescência”.
Antigamente se cultivava um péssimo costume de levar os rapazinhos ao bordel, o que, na maioria das vezes, lhes acarretava traumas, dificuldades nos relacionamentos. E quando estamos entrando na senilidade todos criticam-nos os pudores, em vez de, entusiasmados, “conduzir-nos aos bordéis”!
No que refere-se ao ser humano, viver é sentir, pois o ser humano significa, interpreta tudo que lhe ocorre, e é impossível a interpretação, o dar sentido às coisas, sem a sensorialidade. Faz-se necessário, então, estimular a sensorialidade, despertar sensações, as mais variadas possíveis, e se possível, somente aquelas mais prazerosas…
Ao adentrarmos à senilidade, “o maior pecado é, exatamente, não permitir-se cometer pecado algum”. Na senilidade, o risco que mais deve ser evitado, não é o de morte, mas o de não mais viver enquanto ainda se está vivo, é o risco de “morrer antes da morte chegar”.
Com o avançar da idade, o organismo, no todo, tem acentuada queda na produção de hormônios relacionados ao prazer, à alegria…, e apenas quando estimulado, mediante experiências diretamente vinculadas à sensorialidade e significação, volta a produzir, em alguma medida razoável, tais substâncias, sem as quais viver se torna insuportável e menos ainda desejável.
O “velho safado” e a “velha safada”, ou o “velho maluco” e a “velha maluca”, assim classificados, em tom de crítica, por serem, ainda, aventureiros, talvez mais do que em qualquer outro período da vida, deveriam ser aplaudidos de pé!
Sendo, a sensorialidade, algo tão importante, que estimula os neurônios e todo o organismo, indicando que ainda há Vida na vida da gente, é preciso utilizar da maior variedade possível de estimulação, no que refere-se ao tato, à audição, ao paladar, olfato etc., e principalmente, na “reestruturação de um roteiro existencial linear” o mais agradável possível, em que a pessoa tenha a possibilidade de fazer planos, pois o planejamento arregimenta uma variedade de neurônios que formam redes sinápticas entre memórias e perspectivas. Isto é o mais poderoso meio de, na senilidade, se ter uma vida boa, que mereça muito ser vivida.
Os familiares e amigos precisam encontrar meios de “refazer a estrutura de significados” da pessoa, proporcionar uma “linearidade existencial”, para que a pessoa tenha um “roteiro de vida” e possa, assim, reconhecer a si mesma em um contexto, contexto em que ela tenha importância e prazer.
O organismo humano é uma trama vinculada ao meio, que perde sua razão de ser e vai desfazendo-se na medida em que o meio e ela diminui, acentuadamente, a relação. Podemos entender melhor a importância dessa relação entre organismo e meio quando voltamo-nos ao “ser-em-o-mundo”, de Martin Heidegger, pois então podemos ir além.
Se costuma falar sobre “coisas do ou no mundo”, como casas, carros, montanhas, flores, animais…, e seres humanos. Eis o conceito dos antigos filósofos, que se importavam principalmente com o “ente”, buscando entender da “natureza do ente” e sobre “a sua relação com o mundo”. Porém, se fosse possível retirar cada coisa, até não restar nem mesmo uma, “onde e como estaria o mundo”? Simplesmente não mais haveria mundo. Disto se conclui, facilmente, que o mundo nao é “uma caixa em que se coloca ou da qual se tira coisas”.
O mundo é a reunião das coisas mesmas, de maneira que não se pode falar com propriedade sobre “coisas” e sobre “mundo”, como se de “entes distintos”. O que chamamos de “coisas do ou no mundo” é o próprio “mundo-coisas”; não há, factualmente, separação, por mais que, conceitualmente, seja possível separar. O entendimento de tal fato é um tanto difícil, visto que, embora o mundo só exista na e pela “existência das coisas”, isto é, sendo as próprias coisas em suas relações, constatamos a “existência das coisas distintamente”.
A razão não é capaz de conceber “algo que seja um e muitos”. Precisamos ter a humildade para entender que nem tudo se pode entender… Ao menos isto há como entender, não é mesmo? Que nossa tendência à vaidosa arrogância filosófica e científica não nos cegue em relação a tal obviedade.
Se você, como eu, “enxerga tal obviedade”, está pronto para dialogar a respeito do “Ser-aí-no mundo”, de Martin Heidegger, e para além dele, objetivando descobrir algumas implicações do “mundo-coisas”. Vamos dar mais alguns passos para um entendimento ao menos razoável sobre o “mundo-coisas”. Para tal, utilizaremos o conceito Dasein, de Heidegger, e buscaremos “ir além de tal conceito nele mesmo” _além no sentido de não aplicá-lo somente ao humano, mas a tudo: o “Ser aí” (em Alemão, “Dasein”) aponta para a “circunstância que possibilita o ser”, ou ainda, apresenta o “ser vinculado à circunstância”, de maneira que, “ser e circunstância revelam-se como uma e mesma coisa”, que alteram-se mutuamente.
Em outras palavras, só podemos “ser na medida que a relação de ‘seres aí’ nos permita ou possibilita”.
O “ser não pode ser se não na relação com outros seres e a relação não pode ocorrer fora de espaços e não há espaços fora de historicidade”, isto é, de um “roteiro existencial”, de “movimentos de ‘seres aí’ que não só movem-se, como, também, são movidos”.
Por isso Heidegger também se refere ao Dasein como o “ser-em-o-mundo”, expressão com duplo sentido: “Ser-em” diz do “ente no mundo”, isto é, no ambiente ou circunstância, refere-se “ao ser ‘na condição’ de ato”, enquanto a outra parte da expressão (…”o-mundo”) apresenta o Dasein como “o próprio mundo”. A expressão em Alemão “ich bin” (eu sou) descortina-nos o Dasein, visto que faz a “divisão unitária” da expressão, para fazer-nos entender que “eu” (o ente) “sou” (ação) porque “me faço” (o ente se faz na medida em que age no mundo).
O “ser” só é “porque está sendo” e só “está sendo porque é”. Tais observações, um tanto complexas do ponto de vista linguístico, visto que Heidegger é bastante hermético, são importantes para toda pessoa, independentemente da idade, e ainda mais àquela que está entrando ou que já se encontra na senilidade.
Na senilidade, pela perda da “linearidade existencial”, há a tendência à sensação de não pertencimento, e tal sensação leva à depressão e outros males, incluindo suicídio ou morte logo após a aposentadoria.
Que este meu pequeno artigo possa ter sido útil e que você, leitor (a) faça o melhor uso possível dele, seja você uma pessoa que esteja entrando na senilidade, que já esteja ou que tenha um parente ou alguém muito próximo, que precisa e merece ter, de sua parte, o apoio necessário para continuar na vida, com qualidade de vida… Não se escandalize diante das metáforas utilizadas aqui, como “coisas proibidas para menores de 18 anos”, entre outras, pois é preciso, muitas vezes, o extremo da linguagem, para “sacudir consciências” em relação à vida na senilidade.
Cesar Tólmi é filósofo, psicanalista, jornalista, pós-graduando em Neurociência Clínica e MBA de Recursos Humanos, Coaching e Mentoring, artista plástico, escritor e idealizador da Neuropsiquiatria Analítica, integrada aos campos clínico, forense, jurídico e social.
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