Não seria exagero afirmar que o “novo normal” pós-pandêmico redefiniu e naturalizou novas relações de exploração das desigualdades (inerentes ao capitalismo) recompensando virtualmente a obediência e a produtividade a partir dos dispositivos digitais – além de punir e buscar extinguir qualquer resistência ao seu funcionamento.
Relacionadas, intencionalmente, a mecanismos de produção de dopamina, o neurotransmissor do prazer, as recompensas modelam rotinas comportamentais em ciclos altamente viciantes de gratificação. Até aí, nada muito diferente de condicionar ratos de laboratório a achar o caminho do labirinto em troca de gotas de água e açúcar.
A perversa inovação do capitalismo límbico, como chamou o historiador David Courtright, é a utilização de inteligência artificial na intrincada estrutura algorítmica da rede informacional para capturar a atenção, o tempo e a dedicação de usuários e usuárias do mundo virtual, mantendo-os cativos das telas (ou celas?) enquanto acreditam estarem usufruindo de liberdade inédita e ilimitada, entretenimento gratuito e prazer inesgotável, ao invés de se perceberem como alvos de uma escravidão voluntária digna de distopias futuristas.
Fazer cessar todo sofrimento e qualquer aflição, almejando conforto e bem-estar, é um instinto básico não só da sobrevivência humana, mas da estruturação das sociedades, em praticamente todos os períodos históricos e diferentes contextos socioculturais.
Diante da globalização dos dispositivos eletrônicos e da hiperconectividade da vida híbrida que levamos, entretanto, a busca pela desfrutar da vida tem convergido para um sistema disfuncional de processos abreviados, habilidades atrofiadas, desenvolvimento de potenciais interrompido. Famílias superprotetoras, jornadas de trabalho cada vez mais exigentes e a desumanização das relações afetivas catalisam o efeito devastador das emboscadas projetadas pela neuroengenharia a serviço da lógica predatória neoliberal.
Nascidos na era informacional, são os nativos digitais da geração Z que demonstram com maior ênfase o funcionamento da vida normativa no século XXI. Se sentem fome, não precisam ir ao mercado ou passar horas no fogão. Se desejam independência para deslocar-se de um lugar para o outro, não é necessário ir à autoescola, juntar dinheiro para comprar um carro e mantê-lo abastecido, com o seguro e manutenção em dia. Revirar as prateleiras de uma biblioteca em busca de informações ou procurar em dezenas de sebos por um disco com a música que você ouviu na rádio parece uma memória distante de um mundo que os jovens sequer sabem que existiu. Os shoppings e lojas estão no metaverso, com anúncios direcionados. Nem mesmo para se relacionar é preciso procurar por lugares novos e pessoas desconhecidas.
A comida está a um toque, na tela do celular. O carro com motorista (ou piloto automático, logo menos) espera à porta. As informações, personalizadas e repletas de pós-verdade e fake news – basta pedir. Mercadorias e pessoas, igualmente sob demanda, personalizadas e descartáveis, também.
Para os que dispõem de recursos financeiros, evidentemente. Aliás, opções que prometem dinheiro fácil, sem trabalho e sem esforço, também não faltam. Mas a presunçosa facilidade de satisfazer desejos instantaneamente, sem assumir o risco de falhar, encarar dificuldades ou desafios que demandem tempo e dedicação, é um tiro que sai pela culatra.
A ilusão de que o ciberespaço pode evitar ou até mesmo eliminar sentimentos que vêm da frustração e da contrariedade tem custado o sossego e a felicidade de adolescentes e jovens, que se sentem cada vez mais ansiosos, entediados, inseguros e insatisfeitos com a vida que levam, frequentemente expostos a horas e horas sugadas pelas telas e interações virtuais.
A neurociência explica que o cérebro processa o sofrimento e o prazer de forma oponente e compensatória, ou seja, através da relação de contraste nos estímulos conduzidos por diferentes neurotransmissores responsáveis por sensações e emoções como euforia, satisfação, saciedade, medo, raiva, alívio, cansaço, sempre buscando equilibrar funções fisiológico-metabólicas num complexo e delicado sistema bioquímico e psicossocial de autorregulação.
Para que as recompensas supérfluas da vida digital pareçam reais e satisfatórias, o sofrimento virtual passa a ser encarado de maneira exagerada. Quanto mais angustiante for perder seguidores nas redes sociais, por exemplo, mais prazeroso será receber coraçõezinhos validando conteúdos publicados, independentemente de sua relevância, propósito ou qualidade. Se prestar atenção em uma aula de 40 minutos for convertido num tormento eterno, a recompensa imediata do joguinho de quinze segundos parecerá redentora. Manter o foco e a concentração numa única atividade, ou buscar aprimorar habilidades para superar um obstáculo parece chato e cansativo para uma mente hiperestimulada por luzes, cores, sons e formas projetados para induzir a liberação de dopamina, em doses viciantes cada vez maiores.
Ao experimentar sensações prazerosas que seguem algum tipo de sofrimento ou aflição, o desejo de obter mais prazer é instintivo. Comer chocolate, se masturbar, consumir substâncias como nicotina, cocaína ou anfetaminas – tudo isso exemplifica como a busca por autossatisfação e prazer imediato pode levar a vícios e comportamentos obsessivos compulsivos.
A diferença é que o uso abusivo dos smartphones ainda não é visto como uma prática potencialmente viciante, insalubre e corrosiva. E isso é grave!
Imersos em realidades virtuais e virtualidades reais, jovens não se dão conta do paradoxo que vivem ao tentarem conciliar as falsas liberdades tecnológicas e o aprisionamento emocional que ilustram faces complementares da psicopolítica que dita o neoliberalismo. A miragem de felicidade, mercantilizada como objeto de consumo e ostentação, é insuficiente para compensar o esgotamento produzido pela constante busca por validação, aceitação e prazeres instantâneos.
Cercados de possibilidades e facilidades, de um lado, insatisfeitos e alienados da situação de precariedade e privação que enfrentam, do outro, as pessoas de menor poder aquisitivo, que sustentam e fazem funcionar os bastidores do comércio online, do transporte por aplicativos, da produção em massa, da indústria pornográfica, do estelionato e dos golpes de cassinos e jogos de apostas – todas cegamente movidas pelo desejo de fugir de si mesmas e alcançar a felicidade impossível que veem nas redes sociais.
Expor e compreender a faceta manipuladora do capitalismo límbico é crucial para evitar que gerações inteiras cresçam sob o estigma da disfuncionalidade, incapazes de lidar tanto com frustrações emocionais, quanto com tarefas básicas, como cozinhar, dirigir, ler e interpretar textos, dialogar e enfrentar adversidades com criatividade, afinco e determinação.
Longe de sinalizar retrocessos e vislumbrar um futuro off-line, regressando a passados utópicos, a reflexão, aqui, provoca a recuperar o sentido e o significado de autonomia e autenticidade. Inteligências artificiais e sistemas autômatos, afinal, estão sendo construídos para permitir que possamos, como humanidade, desfrutar do convívio social e das coisas boas da vida.
Por outro ângulo, seria inevitável pensar que os bilionários que controlam o mundo assumem que constructos mecânicos e androides precisarão substituir a mão-de-obra de pessoas inúteis, incapazes até mesmo de serem exploradas. Será esse o desfecho catastrófico da humanidade no enfrentamento à pobreza, à fome, ao desemprego estrutural, à crise climática, às guerras genocidas, à banalização da violência, à desinformação, ao fanatismo e à intolerância?
Pensar pode fazer sofrer. Mas a ação que sucede o pensamento crítico-reflexivo é a única força capaz de, verdadeiramente, subvertê-lo.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em Linguagens, Mídia e Arte