Produto da indústria cultural da década de 1960, a boneca loira, de cintura fina e roupas cor-de-rosa popularizou-se pelo mundo todo, refletindo os padrões de beleza e conduta que se esperava de uma mulher bela, recatada e do lar a partir da visão conservadora do tradicionalismo ocidental em meio à disputa ideológica da guerra fria. Servil e obediente, a mulher-objeto contida na boneca passou a ocupar, desde a infância, o imaginário das crianças com moralismos superficiais e a construção de uma identidade alinhada aos interesses econômicos, políticos e culturais de sociedades controladas historicamente por homens ricos brancos.
Pode parecer exagero afirmar que as brincadeiras da infância afetam o desenvolvimento de civilizações inteiras, mas é exatamente isso que acontece, de acordo com Vygotsky, psicólogo autor da teoria do desenvolvimento pedagógico sociointeracionista e da psicologia histórico-cultural. Ensinar que meninas vestem rosa e brincam de boneca, enquanto meninos vestem azul e brincam de carrinho, ou que é função da mulher cuidar da casa e dos filhos enquanto o homem sai para trabalhar é uma tarefa exigente, que demanda influenciar os mecanismos de percepção de mundo e comportamento das pessoas desde muito cedo.
As brincadeiras e jogos ensinam, de forma lúdica e figurativa, regras e protocolos a serem respeitados, assim como papéis sociais a serem interpretados.
Quando a criança assume, nas brincadeiras, o papel da mamãe, do papai ou do filhinho, da professora ou do aluno, da médica ou do paciente, por exemplo, estão se formando modelos comportamentais que servirão de referência para ela na vida adulta. Valores e habilidades começam a se consolidar ali, através de exercícios de imaginação, impondo à criatividade regulamentos e limites que (re)produzem o contexto de cada época e lugar.
Diante da estreia da produção hollywoodiana que faturou mais de US$150 milhões só no final de semana do lançamento, a grande discussão sobre o filme Barbie (2023) tem sido o suposto engajamento da protagonista ao denunciar e combater violências estruturais, como o machismo, o racismo e a LGBTfobia, depois de deixar para trás o mundo utópico de Barbieland e confrontar o “mundo real”. Depois de “As patricinhas de Beverly Hills” (1995), “Legalmente loira” (2001), “Meninas Malvadas” (2004) e afins, a ideia de protagonistas que rompem com padrões de comportamento em filmes produzidos para serem blockboosters soa, no mínimo, incompleta.
Talvez a Barbie não seja mais a mãe-de-família que passa o dia arrumando a casa e preparando o jantar para o Ken. Depois de estudar, resolveu se engajar em causas sociais e ambientais, ocupar espaços de poder e decisão e usar sua voz e beleza para reivindicar mudanças políticas e… divulgar sua nova coleção de sapatos, promover a clínica de lipoaspiração, distribuir cupom de desconto para harmonização facial, vender anúncios patrocinados no vídeo sobre trocar o canudo de plástico por um de alumínio, ganhar seguidores expondo o absurdo de ter vivido tanto tempo sob controle do Ken.
Fazendo o caminho inverso ao da personagem que abandona o mundo do faz-de-conta, as crianças que navegam por universos fantasiosos na infância nunca abandonam por completo o hábito de transitar pelas utopias do desejo, mesmo adultas.
A questão é que as realidades imaginadas, longe de simbolizar apenas aspirações internas genuínas, acabam por exprimir necessidades ditadas por padrões socioculturais introjetados, geralmente ligados ao consumismo e à imitação de performances socialmente aceitas. Ir ao cinema, por exemplo, assistir à estreia do filme popular, com o namorado ou a namorada, ou na companhia de colegas, vestindo rosa, com direito a sacolas de compras e fast-food no shopping center – tudo devidamente registrado por selfies sorridentes postadas nas redes sociais. Um domingo perfeito, digno de Barbieland, não?
No mesmo final de semana da estreia do filme, os governos da cidade e do estado de São Paulo discutiam o que fazer com as centenas de pessoas que vivem na Cracolândia, região no centro da capital tomada pelo tráfico de drogas e pela completa precarização das condições de vida e da dignidade humana. Estima-se que na maior cidade da América do Sul, a mais rica do Brasil, haja mais de cinquenta mil pessoas vivendo em situação de rua. No Brasil, pode passar de trezentos mil. Nos EUA, país mais rico do planeta, calcula-se que esse número passa de setecentos mil seres humanos sem teto, sem uma cama para dormir, sem um chuveiro para tomar banho, sem uma mesa ou sequer alimento para matar a fome.
E é bastante provável que a maioria dessas pessoas conheça a Barbie e tenha interagido com a boneca em algum momento.
São crianças, jovens, adultos e idosos que veem os cartazes da estreia do filme nas avenidas movimentadas próximas aos becos e vielas que usam como abrigo das violências que sofrem cotidianamente. A criminalidade, principalmente envolvendo furtos e tráfico de drogas, bem como a prostituição, materializam uma distopia inversa ao mundo-perfeito de princesas, arco-íris e unicórnios, escancarando a exploração das desigualdades socioeconômicas, o machismo, o racismo, a intolerância e a desumanização de pessoas que são descartadas como bonecas estragadas que já não servem mais aos propósitos do deus-mercado.
Entre crianças e adolescentes que foram expulsos de casa por não se enquadrarem nos padrões da família-tradicional, pessoas com deficiência abandonadas por familiares e amigos sem condições ou sem vontade de oferecer apoio, gente que se afundou em dívidas e perdeu tudo que construiu a vida toda, de uma hora para a outra, e tantos que nasceram sob pontes e viadutos, criados revirando lixo em busca de comida e esperança – um mar de histórias, sonhos e possibilidades que conflui no caminho da desolação nas cracolândias. Engana-se quem pensa que só há bandidos ali. Traficantes e assaltantes são oportunistas que exploram os vácuos a que Estado e a sociedade deram as costas, mas que raramente vivem nesses lugares.
O uso de drogas como crack e heroína, para quem vive às margens, funciona como a passagem de ida para Barbieland, numa fuga desesperada e corrosiva, única possível, da realidade implacável que raramente é exibida nas telas do cinema ou nos discursos pretensamente empoderadores de personagens criadas para manter o povo alienado de sua própria realidade, acomodado e satisfeito, inebriado pelas drogas socialmente aceitas, vendidas em bares, farmácias e palestras motivacionais.
Vozes dissidentes, verdadeiramente revolucionárias e subversivas, quando se empoderam e passam a ser ouvidas, são silenciadas. Especialmente quando vêm de pessoas marginalizadas, de corpos que destoam dos padrões estéticos, corações que questionam a perversidade de éticas segregacionistas e hierarquizantes. Na vida real, quem expõe e enfrenta as ilusões sustentadas por mundos mágicos de perfeição e meritocracia se torna alvo dos covardes e poderosos.
Mas, mesmo perseguidas, torturadas e assassinadas, continuam sendo inspiração para construir outras realidades possíveis. Dandara e Zumbi dos Palmares, Tereza de Benguela, Rosa Luxemburgo, Olga Benário, Carlos Marighella, Fred Hampton, Malcolm X, Martin Luther King, Vladimir Herzog, Chico Mendes, Dorothy Stang, Marinalva Manoel Kaiowá, Antônio da Costa Santos, Marielle Franco, Márcio Moreira Kaiowá, Jorge Guajajara – presentes!
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.