Prólogo
Esta não é uma crítica. É depoimento acrítico com palavras nascidas não, necessariamente, da razão. Fosse crítica, vasculharia meandros de “Maria Bethânia – Música é Perfume” à procura de defeitos e virtudes do franco-suíço Georges Gachot na condução das falas e ao eleger canções, paisagens, posições de câmera, luzes, opções narrativas.
Talvez implicasse: por que não um brasileiro? E, pretensioso, me ofereceria para realizá-lo. Possuo raízes nacionais para entender a alma da artista, tenho sangue negro (igual ao dela) herdado da cafuza Paulina, avó paterna, e comporia retrato acurado da carreira desde que, em 1972, vi três vezes “Rosa do Ventos”, no Maria Della Costa, da rua Paim, no Bixiga e, no mesmo ano, ao colocar o “profano” pôster de “Drama – Anjo Exterminado” na entrada do meu quarto escandalizei o “sagrado” seminário presbiteriano.
Desperto do delírio do cineasta que não sou (sei, um pouco, escrever) ao perceber que não tenho talento para a direção nem o distanciamento de Gachot e faria um filme excessivo, passado do ponto, conceito que ela ilustra com “Tarde em Itapoã”.
É uma brincadeira, diz. “Se colocar violino ou muito romantismo, fica cafona; prefiro enxugar, deixar sequinha”. Esta é Maria Bethânia, capaz de “enxugar” a considerada brega, “É o Amor” e transformá-la em uma das mais belas releituras da música brasileira.
Ato 1 – A humanidade
Quando Georges Gachot abre-me as portas do filme, estou comedido, “sequinho”. Peço licença a essa mulher de costumes, cantos e posturas sagradas para adentrar os muitos universos dela. Imito a delicadeza japonesa ao arquear levemente o corpo e, olhos no chão, reverencio (ao meu modo) as entidades espirituais dela.
Componho-me em oração e, como não tenho permissão nem intimidade para beijar-lhes as mãos nem abraçá-la, cruzo os braços sobre meu tórax em gesto de acolhimento, não digo palavras, tampouco levanto olhos e, em silêncio acomodo-me para ver o filme.
Rio, quando ela fala do comezinho de todos nós. Pela manhã, se acha careta e pensa “coisas normais que não servem para nada no palco”. Espanto, mas entendo que ela deteste o pôr-do-sol, “hora perigosa em que a natureza muda a guarda”, diz citando um diretor. Nunca pensei sobre, mas também não gosto. Sou o sol da cinco da manhã iniciando a alumiação do dia.
Comove-me ver Dona Canô segurar-se no braço dela (e não no de Caetano) na igreja onde celebra a festa de Nossa Senhora da Purificação, como se a transcendência exacerbasse a cumplicidade feminina.
Na igreja, nos ensaios, nas ruas de Santo Amaro e nos encontros pessoais, ela se despoja da artista. Prende o cabelo, traja vestes modestas, dispensa acessórios. E, apesar dos tantos anos de distância da Bahia, mantém o sotaque, as expressões, a prosódia – e isso a faz autêntica.
Homenageia a cidade onde nasceu porque é a terra, o cenário e o aprendizado dela. E homenageia Caetano: “Ele me ensinou falar, andar, cantar; nossa brincadeira de faquir da infância foi o primeiro exercício de concentração”.
Ato 2 – A Personalidade
No universo social das delicadezas explícitas, Caetano a lê como “personalidade íntegra” que, em tempos de bossa nova cool, se rasgava em cena. “Ela precisava ser dramática”. Gil, sutil, evoca Nelson Rodrigues na eloquente definição que tangencia a grandiosidade: “É a fricção entre o tudo e o nada”. Chico a vê como alguém que traz beleza ao país possível.
Ela própria nomeia, sem ranços acadêmicos, tudo o que vibra no entorno dela. Nana Caymmi é “rara”. “Música é perfume; sensorial, nos fazer visualizar, sentir, viver”. E, singela, define música como pão – alimento consumido por todos em país musicalmente rico.
Coerente com a espiritualidade, avisa a quem seja, que não pronuncia certas palavras. No futuro, em qualquer referência à música brasileira dos últimos 60 anos, Maria Bethânia estará em lugar único, pedestal só dela.
Ato 3 – A trapezista
Ela seria artista ou trapezista. Fez simbiose das duas sem usar rede de segurança. Vibra com o violonista Marcel Powell e o percussionista Marcelo Costa. “Maravilhosos esses dois” e encanta-se com o verso “é melhor ser alegre que ser triste”, de Vinícius, no Samba da Bênção, “a chave de tudo”.
Não ao acaso, o maestro Jaime Alem refere-se a ela como a mulher de “magnetismo muito forte” que o ensinou a ser aberto. E, solene, ela define a própria voz como “expressão de Deus que mora em mim”.
E ninguém canta “Olhos nos Olhos” como Bethânia. Ninguém canta “Terezinha”, como Bethânia. Quando termina esta canção de Chico acompanhada do coro de centenas de vozes, os aplausos e os gritos da plateia se assemelham a um culto.
E quando a mulher recatada de roupas modestas, agora, vestida de cores e, com os cabelos soltos, baila Yá Yá Massemba com passos do corpo elegante e gracioso reluz o brilho de estrela envolta em adereços que lhe adornam braços, mãos, pernas e pescoço.
Como quem se despede, também bailo ao som dos versos “que noite mais funda calunga/ no porão de um navio negreiro”. Olhos ainda postos no chão, começo a sair de costas para a porta, de frente para esse altar de representatividades e símbolos que é o filme.
A memória evoca Nelson Gonçalves cantando “Maria Bethânia”, mas Caetano se interpõe com o verso aflito. E terno. E belo. “Maria Bethânia, send me a letter”. Levanto o rosto e, finalmente, olho nos olhos dela para dizer “Ave, Bethânia!” e voltar ao meu cotidiano de normalidades.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
O filme “Maria Bethânia – Música é Perfume” está disponível na plataforma de streaming do Reserva Imovision