O surgimento das plataformas digitais transformou as salas das nossas casas no espaço de exibição de filmes – a chegada da pandemia apenas exacerbou a prática. Por isso, não comentamos apenas lançamentos, mas produções disponíveis no streaming a que podemos assistir quando quisermos e tendo a liberdade de optar por cinematografias menos óbvias.
Viver duas Vezes (Vivir dos Veces, Espanha, 2020, 1h41 min.), de Maria Ripol, emociona, mas, antes de tudo, tem caráter pedagógico, sem ser aborrecido. O roteiro e a direção estão a cargo de duas mulheres, o protagonista é um idoso com Alzheimer, e a personagem-chave é uma garota com deficiência física.
Como se vê, o cinema descobriu o saudável lugar da diversidade no qual se fala de temas, antes, considerados tabus porque os produtores entenderam que qualquer história, se bem contada, encontra o público. Afinal, somos todos da mesma natureza com iguais carências e objetivos. É assim que evoluímos como seres humanos.
Emílio (Oscar Martinez), professor de matemática aposentado, descobre-se com Alzheimer. No consultório do médico em um hospital, afirma não ter família; porém ao sair da consulta depara com a filha Julia (Inma Cuesta), que comercializa produtos para a classe médica. O surpreendente encontro estabelece o conflito da família que mora em Valência, cidade do leste espanhol.
Doente e solitário, ele estava distante da filha, mulher bonita que se equilibra entre desinteressante emprego e marido fútil, Felipe (Nacho López), que a trai e trabalha em casa como conselheiro de autoajuda via internet. A esperta Blanca (Mafalda Carbonell), neta pré-adolescente, tem deficiência física e se isola no celular.
A memória de Emílio irá, aos poucos, se apagar; ele sabe disso e decide reencontrar Margarita (Isabel Requena), paixão da juventude. Avesso à tecnologia, com ajuda da neta se utilizará das redes sociais para localizá-la e do GPS na viagem que planeja fazer até a província basca de Navarra, onde, supostamente, vive Margarita. Uma série de incidentes faz a família iniciar a viagem cercada de encontros e muitos desencontros.
Clique para ver o trailer de Viver duas Vezes https://www.youtube.com/watch?v=Ibh7C1bsbWE
Drama com características de comédia, em nenhum momento a roteirista María Minguez esconde os problemas. Trata com naturalidade a doença de Emílio e a deficiência de Blanca, assim como explicita a relação desgastada do casal Júlia e Felipe – ela, infeliz por não atender as expectativas do marido; ele, insatisfeito no casamento.
A palavra “aleijada”, aparece algumas vezes e, em nenhuma delas, Blanca a toma por ofensiva; antes, aproveita para fazer piadas. Quando encontra o namorado da internet, Blanca lhe pergunta por que se ocultou atrás da foto de outra pessoa. A resposta: você tampouco me falou da sua “mobilidade reduzida”. Idêntica postura tem Emílio frente à doença.
O modo politicamente correto de o namorado referir-se à deficiência de Blanca aponta para sutil lição de vida: os mais antigos não apenas eram preconceituosos, mas evitavam falar a respeito de tais questões e não sabiam lidar com elas. Rir dos próprios dramas, serve, portanto, para desmontar possíveis preconceitos.
Os dramas dos personagens tratados sem rodeios fazem a história avançar, também, de forma direta. Existem obstáculos, mas o roteiro não perde tempo com detalhes. Tudo está bem delineado: Emilio busca o passado; Blanca, que, no princípio, é grosseira com o avô, torna-se cúmplice dele, Felipe está louco para se libertar daquelas pessoas e Julia vai redescobrir o sentido da própria vida.
Viver duas Vezes emociona pela sinceridade na abordagem dos dramas. Igual aos personagens, cada um de nós tem o seu. E, enquanto buscamos soluções, seguimos. Às vezes, elas estão diante de nós; em outras, temos de correr para alcançá-las antes que o tempo se esgote. E, muitas vezes nem há soluções. Mas isto também é viver.
João Nunes é jornalista e crítico de cinema
Disponível na Netflix. Não recomendado para menores de 12 anos.