Atravessando a maratona de vestibulares que acompanha o encerramento do ano letivo, a juventude brasileira vive momentos de ansiedade e pressão na escolha entre os muitos caminhos possíveis para o futuro. Olhar para o cenário econômico pós-pandemia, com condições de trabalho cada vez mais precarizadas e instabilidades decorrentes de tensões internacionais, como a guerra da Ucrânia e o massacre na Palestina, torna o desafio de projetar possibilidades ainda mais desafiador.
Principalmente para aqueles que precisam ajudar na composição da renda familiar cada vez mais cedo, é frequente a dolorosa decisão de deixar de lado seus sonhos e expectativas de realização pessoal para tornar-se o que o mercado exige que sejam: mão-de-obra. Disponível, barata, eficaz e obediente, mais precisamente.
Segundo dados da OCDE, IBGE e Ministério do Trabalho e Emprego (2023), dos 207 milhões de habitantes do Brasil, 17% são pessoas jovens, que têm entre 14 e 24 anos. Desse grupo, 36% não estudam e nem trabalham de forma remunerada.
Embora a situação contemple herdeiros acomodados, que julgam estudos e trabalho dispensáveis, a maior parte dessa população é formada por pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica e afeta principalmente as meninas e mulheres que, desde cedo, são forçadas a abdicar de seus projetos de vida para assumir a função não remunerada, invisibilizadas e desvalorizada de cuidadoras – da casa, dos pais, dos irmãos, do marido.
A análise estatística da situação escancara o machismo e o racismo estruturais: 60% da população jovem que não estuda e não tem trabalho remunerado são mulheres, e 68% dessa juventude é formada por pessoas de pele preta e parda, que também contempla a maioria dos jovens que têm empregos informais, como entregadores de aplicativo. Além disso, as consequências da perversa Reforma Trabalhista de 2017 e da algoritmização da vida, abrangendo as relações de trabalho, rebaixam e camuflam diferentes formas de exploração econômica, vendidas para a população como momentos de lazer e entretenimento, interação social e empreendedorismo.
De jogos de azar, sites de apostas e esquemas fraudulentos de investimentos à hiperexposição da vida íntima e venda de conteúdos eróticos, estratégias cada vez mais sofisticadas e nefastas aprisionam os jovens entre realidades e virtualidades, usando telas e Inteligência artificial para coletar dados, vender anúncios e condicionar a opinião pública às vontades que emanam dos que lucram com a espetacularização e mercantilização da vida.
Se, uma ou duas décadas atrás, o sonho da maioria dos estudantes era ingressar numa universidade pública para cursar medicina, direito, engenharia, ou conseguir uma bolsa para estudar no exterior, a ideia que se alastra hoje é a de poder copiar o estilo de vida de influencers virais que, geralmente, além de desprezar a importância dos estudos, vendem ilusões baseadas numa concepção rasa e superficial da própria existência.
Embora haja exceções, os conteúdos mais consumidos e acessados com frequência se resumem a sexualização do corpo, ostentação do consumo, reafirmação de discursos de ódio e intolerância, e uma ladainha interminável de reclamações e lamentos diante da competição por engajamento, aprovação e validação de uma legião de jovens enredados pela farsa motivacional que leva a um beco sem saída de inação, fragilidade emocional, narcisismo e frustrações.
O encantamento por desbravar o mundo, conhecer pessoas e lugares diferentes, aceitar o desafio de desenvolver novas habilidades para enfrentar problemas com competência e afinco, de forma colaborativa e empática, tem sido substituído pela lógica imediatista e individualista das microrrecompensas fabricadas pela neuroengenharia digital. Horas e horas com os olhos grudados nas telas, recebendo estímulos sensoriais que estimulam a produção descontrolada de dopamina, viciando usuários e usuárias na impressão de prazer e satisfação que serve como fuga da realidade complexa, contraditória e incontrolável do mundo externo ao smartphone.
O estímulo dopaminérgico excessivo, além de viciante, desregula os parâmetros de autocontrole e percepção de situações prazerosas que decorrem de outras interações, como um abraço, um beijo, ou a sensação de dever cumprido depois de estudar ou praticar exercícios físicos. Tudo parece difícil, cansativo, sem graça e entediante. Há interferência, também, na produção de outros hormônios, como cortisol, serotonina e noradrenalina, trazendo perturbações ao sono, aumentando níveis de estresse e redução na capacidade de manter o foco ou a atenção em atividades que exigem mais concentração, sem recompensas imediatas.
Nessas condições, como planejar dois, três anos de preparação para os vestibulares e, depois, mais quatro ou cinco anos de estudos numa universidade exigente, tendo que conciliar estudos e trabalho, para, aí sim, poder exercer a profissão escolhida buscando realização e satisfação num cenário cada vez mais competitivo e desumanizado? A psicopolítica se manifesta no atual estágio do neoliberalismo pelo esvaziamento das relações afetivas e a completa mercantilização do tempo, objetificando e reduzindo as pessoas a métricas de engajamento, produtividade e desempenho.
Ao mesmo tempo em que a juventude está deixando de desenvolver qualidades e habilidades fundamentais, como disciplina, perseverança, resistência e consistência, oportunistas que lucram com o medo, a insegurança, a desconfiança e a fragilidade socioemocional estão afirmando, cada vez mais, seu domínio e influência sobre adolescentes e jovens com defasagens cognitivas, comportamentais, psicológicas e educacionais.
Casos frequentes de depressão, ansiedade, estafa, exaustão, transtornos compulsivos e um mal-estar generalizado com relação ao futuro e à própria vida são sintomas desse engenhoso sistema de controle alienante, incapacitante e muito eficaz, além de lucrativo, para quem o opera.
Movidos por necessidades financeiras, pelo desejo de aceitação social e promessas de felicidade instantânea, não há grandes perspectivas de melhora quando é preciso abandonar sonhos para se encaixar em espaços de exploração econômica e padronização sociocultural.
Os vestibulares, embora formatado com critérios bastante questionáveis de seleção e exclusão, ainda funcionam como uma espécie de bússola de parametrização das matrizes curriculares da Educação Básica. Diante da descabida reação da bancada ruralista ao acusar o ENEM 2023 de doutrinação ideológica, fica claro que a desvalorização da criticidade e da criatividade, censurando discussões e debates que exponham problemas a serem resolvidos e soluções a serem criadas, se revela vital para a manutenção da lógica de conformismo e rejeição a qualquer subversão do conservadorismo, mesmo diante de crises terminais como as que vivemos.
Como almejar a materialização das transformações sociais, política e culturais de que esses tempos tanto carecem quando a ordem do dia é perder a vida para ganhar a vida trabalhando em troca de recompensas intangíveis, voláteis, e remunerações injustas, insuficientes ou até mesmo inexistentes?
Pouco adianta ter aprovação no vestibular se o Ensino Superior funcionar como uma extensão da adolescência para quem deseja manter-se na mesma situação, confortável e acomodado, encarando a vida como uma lista de tarefas a cumprir para alcançar a próxima fase ou abrir o baú do tesouro . Por outro lado, a reprovação nos exames não significa o fracasso fatal e irreversível, sobretudo se a experiência servir como catalizador de mudanças de comportamentos e ampliação de perspectivas sobre escolhas e caminhos possíveis.
A quem tem o privilégio de decidir que caminho trilhar nessa nova empreitada, que se inicia (ou que se reinicia) com os vestibulares, a provocação de buscar algo que vá muito além de dinheiro ou status é mais do que necessária!
Para isso, é preciso, antes, reconhecer-se sujeito e olhar com criticidade para as complexas estruturas que condicionam nossas decisões. Esse é o papel da educação libertadora, que não está nas dancinhas do tik-tok, nos joguinhos de aposta e nem nos discursos motivacionais de adoração ao dinheiro.
No passo em que estamos, como já previa Charles Chaplin, em Tempos Modernos (1936), a juventude, frequentemente associada à esperança e à inovação, poderá seguir reduzida a mão-de-obra autômata, infeliz e incapaz de expressar e exercer seu papel de protagonismo na construção de realidades que possam não só, como diz Ailton Krenak, adiar o fim do mundo, mas devolver sentidos mais humanos e significados mais profundos à vida.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em Linguagens, Mídia e Arte