Estiagens prolongadas, temperaturas máximas recordes, incêndios de proporções devastadoras na Europa, Canadá e Havaí. Furacões, ciclones e tempestades de enorme intensidade, icebergs descolando das calotas polares, que derretem em níveis alarmantes, assim como os topos de montanhas nevadas onde nascem rios condenados a desaparecer, enquanto a elevação do nível dos oceanos ameaça regiões litorâneas, onde fica a maior parte das cidades e da população humana no planeta Terra.
Foi diante desse cenário catastrófico que Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, usou a expressão “ebulição global” para destacar a emergência climática que piora a cada ano, demandando ações mais eficientes, diferentes das que, até agora, foram insuficientes para conter o “aquecimento” global, aparentemente normalizado pelos setores responsáveis pelo agravamento dos desequilíbrios ecológicos nos séculos XX e XXI.
A história geológica da Terra é antiga – tem pelo menos 4,5 bilhões de anos. Nesse tempo todo, o planeta atravessou eras glaciais e teve longos ciclos de aquecimento. Há cerca de 325 milhões de anos, por exemplo, as temperaturas muito baixas por toda a superfície terrestre perduraram por 100 milhões de anos, durante o Permo-Carbonífero. Na era dos dinossauros, em compensação, as temperaturas eram tão elevadas que sequer havia gelo nos polos, sobretudo no Jurássico e Cretáceo, que ocorreram de 200 a 65 milhões de anos atrás.
Vivemos, tecnicamente, um período de aquecimento global desde o fim do Pleistoceno, 12 mil anos no passado, marcado pela última era do gelo ocorrida na Terra.
O início do Holoceno, época que perdura até os dias atuais, coincide com alterações climáticas que facilitaram a dispersão do ser humano pelo planeta, ao mesmo tempo em que centenas de espécies foram à extinção, a exemplo dos mamutes, mastodontes, tigres-dente-de-sabre e preguiças-gigantes. O aquecimento global, portanto, não foi originado pela atividade humana, ou seja, não é antropogênico, mas natural.
Todavia, as atividades antrópicas ligadas ao desmatamento e à queima de combustíveis fósseis desde a Revolução Industrial do século XIX vêm intensificando e acelerando dramaticamente a elevação das temperaturas globais, impedindo que os sistemas ecológicos estabeleçam novas formas de equilíbrio. Por isso, alguns cientistas consideram que estaríamos não mais no Holoceno, mas no Antropoceno ou, ainda Tecnoceno, atualmente.
O aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera é um dos principais causadores da ebulição global. As moléculas de CO2 têm capacidade de absorção de energia solar e retenção dela na forma de calor, produzindo o que chamamos de efeito estufa.
Esse efeito é natural e necessário à manutenção da vida na Terra, reduzindo a amplitude térmica do planeta durante a alternância de dias e noites. Mas, quando esse efeito é intensificado, os desequilíbrios trazidos pelas alterações abruptas na atmosfera têm como consequência a produção de eventos climáticos extremos. A principal fonte desse CO2 adicional é a queima de combustíveis fósseis, como carvão e petróleo, mas inclui a combustão de qualquer fonte que contenha carbono, como florestas e resíduos em aterros sanitários.
A queima de combustíveis também libera óxidos de enxofre e nitrogênio que, em contato com a água nas nuvens, reduzem o pH das chuvas, tornando-as ácidas. Quando essa chuva chega à superfície, as alterações provocadas nos solos, rios e lagos provoca a morte de microrganismos fundamentais para a manutenção dos processos bioquímicos que permitem a sobrevivência de sistemas mais complexos. Anelídeos, como minhocas, e anfíbios, como rãs, sapos e pererecas, também são gravemente afetados pela chuva ácida, produzindo desequilíbrios em efeito dominó, a exemplo da proliferação de mosquitos transmissores de doenças como a dengue em centros urbanos desmatados. Ao chegar aos mares, a água mais ácida pode levar à destruição de corais, formações calcárias que abrigam milhões de espécies que sustentam a vida nos oceanos.
No decorrer dos últimos séculos, os imperativos econômicos claramente têm se sobreposto às agendas ecológicas, numa nítida manifestação do pensamento imediatista, predatório e individualista característico do produtivismo industrial observado tanto no capitalismo europeu-estadunidense quanto no socialismo soviético-chinês. Evidente que o progresso científico-tecnológico trouxe consideráveis avanços em termos de conforto e qualidade de vida para parte da população, mas é preciso mensurar os efeitos colaterais e os prejuízos que serão legados às futuras gerações, muitos já considerados irreversíveis em escalas de tempo que façam sentido para a vida humana.
Mesmo pensando em vultosas quantidades de dinheiro, temos que questionar: quanto custa despoluir os oceanos? É possível usar criptomoedas para baixar a temperatura do planeta?
O metaverso vai ressuscitar espécies extintas fora das telas? Vamos comer ouro e beber prata quando os solos virarem areia e os rios apodrecerem? Fugir para outros planetas ou para o fundo do mar?
O Brasil, país que abriga a maior biodiversidade terrestre, a maior rede hidrográfica e a maior floresta equatorial do planeta, tem sido péssimo exemplo de preservação ambiental nos últimos anos, negligenciando e até mesmo estimulando o desmatamento para expansão da mineração e da agropecuária.
As árvores têm papel fundamental na manutenção do equilíbrio homeostático da Terra, uma vez que, além de servir como abrigo e produzir alimento para milhões de espécies, também captura o gás carbônico atmosférico e produz grandes quantidades de vapor de água enquanto realiza a fotossíntese, alimentando o ciclo da água.
Trocar florestas por café, cana e soja, cultivadas com quantidades absurdas de agrotóxicos, é condenar a vida das futuras gerações em troca de obter lucros no curto prazo. O mesmo vale a mineração de petróleo e de ferro e para a criação de enormes rebanhos bovinos, bois e vacas cuja digestão libera metano, outro gás estufa que intensifica o aquecimento global.
Antes do paradigma urbano-industrial incessantemente regurgitado como novidade pelo neoliberalismo, civilizações em diferentes lugares do mundo foram capazes de sobreviver e produzir avanços extraordinários por milhares de anos, de forma muito menos agressiva e autodestrutiva. Embora o pensamento ecológico tenha, geralmente, a preocupação maior de proteger ou salvar a Terra, é importante lembrar que a vida no planeta tem um incrível potencial adaptativo – mas o ser humano, nem tanto.
Ou seja, é bem realista supor que, diante de mudanças climáticas extremas, a humanidade possa tornar-se mais uma entre centenas de milhões de espécies extintas ao longo da existência desse astro geoidal que orbita o Sol. Se a consciência coletiva da humanidade for incapaz de pensar em estratégias ecossociais e colocá-las em prática o quanto antes, é possível que a ebulição global, tal como o mecanismo de defesa imunológica da febre, crie condições para que, em milhares ou milhões de anos, outras formas de vida possam conviver de forma mais harmoniosa enquanto, eventualmente, estudarão os fósseis de mamíferos supostamente inteligentes de eras anteriores.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.