Demorou para que um dos ídolos da música internacional mais cultuados de todos os tempos recebesse biografia à altura do talento e da importância do fenômeno popular chamado Elvis Presley. E que a direção de “Elvis” (Elvis, Estados Unidos, 2022, 160 min.) fosse de Baz Luhrmann, também roteirista, em parceria com Sam Bromell, Craig Pearce e Jeremy Doner e partir do argumento dele e de Doner. O rapaz nascido no Mississipi merecia filme com essa grandeza.
O cineasta australiano tem estilo. As cores vivas (valorizadas pela cinematografia de Mandy Walker) saltam na tela e conjugam com os caminhos do personagem concebido por direção vibrante – impossível não lembrar de como essa vibração marcou a diferença na releitura contemporânea que ele fez de “Romeu e Julieta” (1996).
Em alguns momentos, em especial nos shows em que o cantor entra em espécie de transe (herança da formação dele nas igrejas negras protestantes), Luhrmann estabelece charmoso diálogo entre as cores e o preto-e-branco em nítida remissão ao passado, mas também para exercitar, com êxito, a estética.
O mesmo acontece com o alucinante rodar da câmera e com os cortes em jogo constante de imagens fragmentadas e, aparentemente aleatórias, mas que conformam um todo de rara beleza.
Aqui, a conjugação ocorre com a excepcional edição de Matt Villa e Jonathan Redmond (que, afinal, se estende a todo o filme), na qual importa menos os fatos e muito mais a mise-én-scène: o cenário da música, a performance da dança eletrizante de Elvis, a histéria das fãs, o ritmo novo e espetacular (nascido, também, pelo contato direto com os negros) que desencadeam apresentações próximas do caos.
E o objetivo é fazer o espectador adentrar a história que não está preocupada em, meramente, reconstituir um passado, mas mobilizá-lo para entender esse fenômeno artístico-cultural e a música executada por ele.
Todos esses efeitos passam pela direção e por preciso roteiro – aliás, aula para quem ambiciona escrever biografias para o audiovisual. É comum os roteiros tratarem da história completa do biografado – incluindo detalhes dispensáveis ou desinteressantes.
Luhrmann e seus parceiros centram numa única linha narrativa: a conflituosa (às vezes, dolorida; outras vezes, deliciosa) relação entre o artista e seu empresário Tom Parker (Tom Hanks em grande forma, interpretando figura grotesca, mesquinha e autoriária).
Ora, ele faz o papel de carrasco implacável, ora representa o segundo pai de Élvis – o real, Vernon (Richard Roxburgh) tateia entre a insegurança e a fragilidade.
É da alternativa dessa relação repleta de controvérsias que a narrativa, segundo a ótica de Parker (o narrador) se sustenta. A duração do filme parecerá demasiada, mas não. Trata-se do tempo justo para se adentrar ao conflito dos dois personagens e no qual nada se desperdiça.
Desnecessário dizer que Elvis era figura passional extrema.
Mesmo quando a direção tende ao exagero, como a cena da morte da mãe Gladys (Helen Thomson) ou o amor dedicado à mulher, Priscilla (Olivia DeJonge), não se pode dizer que houve desperdício de lágrimas. Trata-se de reforço para acentuar a personalidade do cantor.
E, ao lado de tantas virtudes, “Elvis” também é emocionante nas perfomances musicais, na impecável interpretação de Austin Butler (depois do filme, será temerário alguém tentar fazer cover de Elvis), na história vitoriosa do artista nascido e criado em condições sociais humildes e no desfecho melancólico de carreira tão brilhante.
E não há como não mencionar o fato de o filme atravessar um dos períodos mais férteis de mudanças culturais e de comportamento ocorridas na história recente da humanidade. Por conta disso, a história que corre como pano de fundo reaparece como em muitos outros filmes dessa época.
Entretanto, o diretor e seu roteiro conseguem rever fatos importantes e dar-lhes tom de novidade, como se contar a história de Elvis fosse contar a grande história política-social-cultural do mundo ocidental dos anos 1950 aos 1980.
Por fim, vale lembrar que o cantor foi produto de circunstâncias que o levaram a viver entre os negros. E, que, sem os negros não haveria Elvis Presley. E, como constatação final (não que não se saiba, mas como adendo): que espetacular é música negra, em geral, e a norte-americana em particular.
O filme está em cartaz nos cinemas
João Nunes é jornalista e crítico de cinema