Cidadãos do Mundo (Lontano Lontano, Itália, comédia, 2020, 91 min.), de Gianni Di Gregorio, escancara como a insatisfação, para o bem ou para o mal, é parte essencial do ser humano. O adolescente Abu (Salih Saadin Khalid), natural de Mali, país sem saída para o mar na África Ocidental, tinha todos os motivos do mundo para abandonar a aldeia onde vivia. Uma bomba matou a mãe dele e a avó, ele fugiu para a Itália e sonha ir mais longe: chegar ao Canadá a fim de ficar ao lado do irmão.
Mas, e três homens adultos, dois deles aposentados, que estão infelizes com a situação econômica da Itália e querem deixar Roma em busca de lugar melhor? A velha Roma imperial, do Coliseu, da Fontana di Trevi, do panteão, da Capela Sistina de Michelangelo (o momento epifânico em que o dedo de Deus toca o homem), nada tem que atraia esses senhores? Pelo jeito, não. E onde estaria esse paraíso?
Eles decidem consultar idoso entendido no assunto, que mostra as vantagens e desvantagens oferecidas pelos países.
A Austrália, por exemplo, é maravilhosa; porém, os mares que a cercam estão tomadas de águas-vivas, ser aquático que pode ferir e matar o humano em cinco minutos. A Tailândia exige do aventureiro que eles se casem com mulheres locais. Açores, ilha localizada no Atlântico, acaba sendo escolhida como o lugar onde todos os sonhos poderão ser realizados – seja lá o que isso signifique.
Então, bora aprender português. É fácil, parecido com o italiano. Ledo engano. A primeira aula revela-se um fracasso, pois os alunos não conseguem nem articular a palavra cavalo. Quer dizer, o Professor (Gianni Di Gregorio) consegue. Ele foi professor de latim e grego, é o mais centrado dos três, tem bom salário como aposentado, toma vinho, lê o jornal do dia no café da esquina e gasta horas em prosa como amigo Giorgetto (Giorgio Colanseli).
Este, sim, está de mal com a vida. Resmunga com o irmão dono de banca de frutas, reclama da vida, do salário e, veja bem, está infeliz vivendo em Paris. Quero dizer, em Roma. E ele conhece o garoto de Mali, pois cede o banheiro da casa para o menino se lavar todas as noites. Pobre Giorgetto: nessa idade e ainda não aprendeu muita coisa.
O terceiro chama-se Attilio (Ennio Fantastichini). Bem, esse é free as bird (será que caberia citação dos Beatles? Sim, Beatles cabe em qualquer lugar). Então, Attilio é livre como um pássaro e o que vier será bem-vindo. Ele nem sabe a razão da visita do Professor e de Giorgetto à casa dele, aliás, nem os conhece e, mesmo assim, topa viajar – e Açores está de bom tamanho.
Talvez até Mali servisse. Soa estranho? Pois veja o filme para saber o motivo da afirmação.
Detentor de vasto currículo, já fez de tudo na vida; atualmente, comercializa objetos antigos. Com um detalhe: um espelho quebrado, segue quebrado para manter a autenticidade de antigo.
A preparação dura uns quantos dias e, nesse período, a vida dos três sofre sutis transformações. O Professor paquera mulher que frequenta o mesmo café onde ele lê jornal e toma vinho; Giogertto precisa de um favor do irmão e vislumbra algo até então obscuro e Attilio conhece Abu, o menino que viu uma bomba destruir a família dele.
A partir do roteiro do próprio diretor (com Marco Pettenello), Giorgio Colanseli dirige a comédia construída de pequenos achados engraçados – está mais para o sorriso que a risada, a graça se coloca nas entrelinhas, nos detalhes, nas ironias econômicas. Eis a força do filme.
A primeira foto que ilustra este texto é perfeita para corroborar com a ideia de sutileza da comédia do diretor italiano. Tal imagem pode parecer banal, superficial e até faça adormecer nossos sonhos mais profundos ou domesticar nossos desejos ou, ainda, amenizar nossas insatisfações.
Confira o trailer oficial do filme neste link https://youtu.be/HCQQQiPGrjY
Ocorre que, às vezes, é necessário descobrir a grandeza do que nos parece modesto, desprovido de imponência, distante do grandioso, como desfrutar do prazer de saborear um pedaço de melancia. Ou estar em casa, mesmo que a casa seja um lugar em desalinho, escurecido, sem brilhos e longe da nobreza. Só então entenderemos por que a obra de Michelangelo pode provocar epifanias.
O filme está em cartaz no Cinépolis do Shopping Galleria Campinas
João Nunes é jornalista e crítico de cinema