Se, no passado, oráculos eram convocados a ler a sorte de reinos em runas e vísceras para determinar o destino de impérios e nações, hoje em dia são analistas financeiros que chamam para si o quase sobrenatural poder de vislumbrar o futuro a partir de interpretações, cálculos complexos e muita, muita especulação diante de gráficos e números originados de transações em bolsas de valores, bancos e fundos de investimento que operam em escala global.
É perceptível que o capitalismo se transformou profundamente conforme o acesso à internet foi ficando cada vez mais fácil, possibilitando realizar procedimentos que antes demandavam enorme burocracia, conhecimento técnico e tempo. Investir em papeis, títulos e ações de megaempresas listadas nas bolsas de valores, por exemplo, tornar-se credor de dívidas do Estado ou até mesmo emprestar dinheiro a juros para um banco em outro país (e vice-versa) – tudo isso é possível em alguns toques na tela de um smartphone conectado à internet.
Não à toa, o atual estágio do capitalismo financeiro, característico da segunda metade do século XX, é chamado de informacional – tanto por conta do poder que as empresas de telecomunicação e processamento de dados possuem, quanto pela forma como o acesso e controle às informações é cada vez mais estratégico e valioso para instituições convertidas em entidades que parecem ter personalidade e vontade própria, como esse tal “Mercado”, o Estado, a Igreja, a Imprensa.
Enquanto as leis e os dogmas se apresentam geralmente de maneira mais coercitiva, autoritária e direta, como meio de legitimar o poder da coroa e da cruz através da espada, a promessa de liberdade e independência é bastante sedutora na forma sutil como exerce influência e controle no dia-a-dia das pessoas, utilizando dispositivos sofisticados nessa empreitada, incluindo plataformas online e ambientes virtuais de investimentos, apostas e negociações gamificadas.
De adolescentes que usam o dinheiro da mesada em cassinos digitais, a pessoas que vendem a casa arriscando tudo num investimento fraudulento, ou que economizam no já escasso orçamento para deixar o dinheiro rendendo juros para o futuro, e a enorme força de trabalho ligada ao comércio virtual, bancos digitais, jogos, aplicativos e empresas de consultoria e corretagem de ouro, dólares, NFTs e criptomoedas – eis os correligionários, adoradores fiéis e dedicados do deus-mercado.
Apesar de ser apresentado como uma estrutura dinâmica e de negociações bem menos hierarquizada, ou seja, mais horizontal e descentralizada que o Estado ou a Igreja, o “Mercado”, como entendemos hoje, é a síntese, sempre em movimento, das interações econômicas do capitalismo. Taxas de juros, inflação, dívidas, impostos, tributos, balança comercial, câmbio monetário, ajustes fiscais, salário mínimo, desemprego, rendimentos, dividendos: tudo isso para tentar influenciar, controlar e justificar a fantasmagórica e nada imparcial “mão invisível do mercado”, como dizia Adam Smith já no século XVIII.
Acontece que as mãos que dão forma e colocam em funcionamento o mundo real são muito visíveis… O mercado de trabalho, com todas as heranças do colonialismo e da escravidão, está bem na frente dos nossos olhos: no campo, nas lavouras, nas fábricas e usinas, no comércio, nas escolas e hospitais, nas construções, na limpeza, na segurança, nos laboratórios, nos clubes e academias, nas cozinhas e restaurantes, nos escritórios, nas motos, ônibus, carros, caminhões etc. O mercado consumidor também está à vista – inclusive nas desigualdades abissais entre quem precisa sustentar uma família inteira com um salário mínimo e quem ostenta, com extravagância, fortunas que raramente poderiam ser acumuladas somente com trabalho honesto e dedicação.
Os sentimentos desse tal Mercado, entretanto, quase nunca são representativos dessa gigantesca massa de trabalhadores e trabalhadoras, tão diversa, cheia de contrastes e contradições – mas, sim, de uma minúscula fração desse colossal sistema de controle e alienação que muito se assemelha à pirâmide social das teocracias faraônicas do Egito Antigo.
Segundo dados da ONG britânica OXFAM, em 2022 os seis brasileiros mais ricos do país somaram fortunas equivalentes ao patrimônio dos cem milhões de brasileiros mais pobres. Por quem esse tal Mercado costuma falar? E mesmo a Imprensa, essa teórica agente imparcial das informações, até que ponto dobra-se aos interesses dos anunciantes e patrocinadores que viabilizam seu funcionamento? Quanto lucra com o engajamento gerado pelas constantes turbulências, alarmismos, previsões catastróficas e anunciações sobre escolhas e decisões que tanto se empenha em influenciar?
Dias depois do “mau humor” e do “pessimismo” do Mercado, fazendo ações caírem a investidores se agitarem diante de falas do recém-eleito Presidente Lula sobre o combate à pobreza e à valorização da classe trabalhadora, praticamente não houve reação do topo da pirâmide financeira após os atentados antidemocráticos em Brasília dia 08 de janeiro. Para expor o caráter arbitrário e tendencioso das fábulas de liberdade do capital, basta ver que três dos homens mais ricos do Brasil vêm protagonizando uma das maiores fraudes financeiras da nossa história, envolvendo um desfalque de nada menos que R$43 bilhões de uma das gigantes redes de varejo do país. Quarenta e três bilhões de reais.
Apenas a título de comparação, o Mensalão, esquema de corrupção envolvendo o PT em 2005, chegou a somar R$100 milhões em pagamento de propinas a deputados federais; cerca de R$6 bilhões foram devolvidos aos cofres públicos em decorrência do desmantelamento do Petrolão, corrupção público-privada de desvio de verbas da Petrobras; o Bolsolão, outro esquema de corrupção represando verbas públicas em um orçamento secreto para comprar votos do Congresso e tentar garantir a reeleição de Bolsonaro, abriu brechas para movimentar R$19 bilhões em 2022. O rombo nas Lojas Americanas, empresa privada que tem como acionistas de referência Lemann, Sicupira e Telles, é de R$43 bilhões.
A rede de varejo emprega cerca de cem mil pessoas direta e indiretamente, potenciais desempregados se a empresa falir, e as ações negociadas na bolsa despencaram mais de 85% desde que o desfalque foi noticiado, levando centenas de milhares de pequenos investidores ao desespero. O mercado, porém, está ouvindo primeiro os bancos, principais credores das dívidas da varejista, e de tantos brasileiros e brasileiras que seguem pagando juros exorbitantes para evitarem passar fome ou serem despejados de seus lares. Como pode haver tanta gente vivendo sem um teto sobre a cabeça enquanto “o Mercado” pensa em como transferir a dívida de bancos e bilionários para o povo mais pobre, marginalizado, já tão explorado?
Do outro lado da disputa judicial contra os bancos, os três principais acionistas são, também, sócios-fundadores da 3G Capital, empresa que controla um império trilionário formado por marcas como AmBev, Kraft Heinz e Burger King no Brasil. Mesmo com perdas consideráveis em seu patrimônio, Lemann, o homem mais rico do Brasil, ainda é detentor de uma fortuna estimada em US$16 bilhões (sim, em dólar!); Telles detém US$10,8 bilhões e Sicupira US$ 8,8. Será que os fãs da operação Lava-Jato vão se revoltar contra eles? Detentores de 10% das ações da recém-privatizada Eletrobras, a 3G Capital tem poder para compensar suas dívidas, oriundas de má gestão e irresponsabilidade, cobrando mais caro pela eletricidade, serviço essencial cuja conta milhões de pessoas lutam para pagar em dia.
Engana-se, todavia, quem pensa que é natural ou normal que o mundo financeiro seja controlado pelos bilionários, tal como já foi controlada a política por reis, ditadores, papas ou faraós.
De acordo com dados da Forbes (2022), Ellon Musk, apesar das “crises” que o fizeram perder o posto de homem mais rico do mundo, ainda possui um patrimônio de US$178 bilhões. Já Luciano Hang, dono da Havan, viu seu patrimônio dobrar em 2022 e acumula US$4,8 bilhões. Ronaldo Nazário está na faixa de 1 bilhão de dólares e Neymar, 1 bilhão de reais.
E você? De acordo com o Pnad-IBGE, em torno de 90% da população brasileira atravessou 2022 com menos de R$3.500/mês; dessas, 63 milhões com menos de R$500/mês. Mesmo assim, só no Brasil, as quase 14 milhões de pessoas que vivem em favelas, na maioria das vezes sem acesso a saneamento básico, asfalto e rede elétrica, movimentam cerca de R$120 bilhões por ano.
Na B3, bolsa de valores brasileira, cerca de 4,5 milhões de investidores são pessoas físicas – muitas dessas apegadas à ilusão de pegar carona no vácuo dos bilionários que têm informações privilegiadas e enorme influência política nos negócios, dedicando horas e horas a fio movimentando dinheiro pra lá e pra cá, sem produzir efetivamente coisa alguma, sustentando uma lógica especulativa, que vê em crises e instabilidade para seguir tirando dinheiro dos que têm menos para financiar quem tem mais.
Como seria se o patrimônio dos bilionários, esses semideuses que controlam o tal Mercado, fosse melhor distribuído entre os trabalhadores e trabalhadoras que constroem e movem as engrenagens do mundo?
Não há recursos suficientes para erradicar a fome e investir em educação, saúde, saneamento, cultura e lazer? Limitar sonhos megalomaníacos de ídolos do neoliberalismo para garantir dignidade e qualidade de vida à humanidade, trocando a lógica do acúmulo e da competição pela generosidade e cooperação. Utopia? Era o que diziam os faraós e sacerdotes ao povo escravizado que vislumbrava outras realidades 2.500 anos no passado.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.