São absolutamente inegáveis os progressos que tivemos nas últimas décadas em relação a prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças infecciosas. O desenvolvimento de novas vacinas, novos antivirais, antibióticos, antifúngicos, antiparasitários, etc. aumentaram de maneira extraordinária nossa capacidade de prevenir, diagnosticar e resolver muitos casos de doenças infecciosas. Em contrapartida, nos últimos anos tem havido aumento preocupante no número de zoonoses e doenças vetoriais em várias partes do mundo.
Esse aumento pode ser atribuído a uma série de fatores, incluindo o aumento da população humana com crescimento das áreas urbanas, a degradação do meio ambiente, as mudanças climáticas e o aumento da mobilidade global.
Existem várias razões pelas quais as zoonoses e doenças vetoriais podem emergir ou ressurgir. Uma delas é a interação cada vez mais próxima entre os seres humanos e os animais selvagens e domésticos. Outro fator importante é a capacidade dos agentes infecciosos de sofrerem mutações ou adaptações genéticas, permitindo que eles infectem novas espécies ou se tornem mais “virulentos”.
Essas doenças podem ter um impacto significativo na saúde pública, exigindo respostas rápidas e eficazes por parte das autoridades de saúde.
Vetores são organismos vivos que podem transmitir doenças infecciosas entre seres humanos ou de animais de várias espécies para os seres humanos. A lista destes vetores e de animais transmissores é grande, bem como as doenças que podem ser por eles transmitidas.
Os mosquitos são os vetores mais conhecidos, mas há uma série de outros fatores como os carrapatos, moscas, flebotomíneos, pulgas, triatomíneos e alguns caracóis de água doce.
Neste grupo de doenças vetoriais estão todas as arboviroses (1): Dengue, com os seus quatro sorotipos; Chikungunya; e Zika (estes transmitidos pelo Aedes Aegypti) e a febre amarela, hoje uma doença silvestre e que há pouco tempo atingiu fortemente o Estado de São Paulo e reduziu também a população de macacos bugios (também alvos preferenciais da doença) além de atingir fortemente seres humanos. A febre amarela é transmitida pelo Haemagogus e Sabethes fora do ambiente urbano.
Outras entidades vetoriais são a doença de Chagas e a malária.
A doença de Chagas, causada pelo Trypanosoma cruzi que, felizmente hoje, tem uma transmissão natural através do inseto “barbeiro” bastante rara, mas ‘permanece como preocupação pela sua transmissão através das transfusões sanguíneas, com controle sorológico obrigatório nos Centros de Hemoterapia, mesmo nos países do primeiro mundo, devido a imigração de pessoas de áreas endêmicas, principalmente da América latina.
Em relação às zoonoses, temos uma série ainda grande e relevante dentro da saúde pública, que são os acidentes com animais peçonhentos: escorpiões, muito importante e até grave neste momento; serpentes, onde o Instituto Butantan tem uma importância enorme não só para o Brasil como para o mundo como um dos maiores produtores de soros antiofídicos; aranhas; mariposas e suas larvas; abelhas e vespas; besouros; lacrais; peixes; e águas-vivas.
Enorme preocupação se mantém para a raiva animal e, principalmente, a raiva humana, transmitida por mamíferos (potencialmente, todos), destacando-se os cães, gatos, morcegos, bovinos, equinos etc. Lembrar que a raiva humana não tem tratamento e, após se instalar, tem mortalidade de 100%. Portanto, a disponibilidade de vacinas e soros antirrábicos é crítica. Mais uma vez, a importância do Instituto Butantan.
Outra preocupação relevante é com a leishmaniose causada por um parasita do gênero Leishmania, com suas formas clínicas tegumentar/cutânea e visceral. A forma visceral da doença pode ser muito grave tanto em animais como no homem causando uma doença infecciosa, com quadro de febre e intensa visceromegalia (crescimento do fígado e do baço).
Outra zoonose muito preocupante e transmitida por urina de vários animais, principalmente de roedores, em tempos de muitas chuvas e inundações, é a leptospirose. Doença febril causada por uma bactéria do gênero Leptospira que causa febre, icterícia (olhos amarelados) e quadro de insuficiência hepática. Não é exclusiva do homem, outros animais podem se contaminar e adoecer.
Finalmente, e não por acaso, chegamos à febre maculosa. Nossa região é área endêmica para febre maculosa brasileira (FMB) e todos os anos convivemos com alguns casos, principalmente no período mais seco do ano, especialmente entre os meses de junho e novembro, quando os exemplares jovens dos carrapatos estrela – ninfas e larvas, são as formas mais prevalentes (em maior quantidade).
Pelo pequeno tamanho, são os mais difíceis de serem identificados, podendo parasitar o hospedeiro por maior tempo. Esta situação é crucial para a transmissão da doença, que é feita pela regurgitação do parasita enquanto suga o sangue da pessoa. Apesar de menos de 1% da população de carrapatos-estrela estarem contaminadas, é necessário que a população esteja alerta ao frequentar áreas com presença de vegetação.
Todos os anos, a Secretaria de Saúde de Campinas e outras Secretarias de nossa cidade e região, fazem um intenso trabalho de educação junto aos profissionais de saúde e a sociedade para que “lembrem” da doença uma vez que o médico ou o profissional de saúde só faz o diagnóstico da doença que conhece e que se lembra em seu raciocínio clínico, durante as consultas.
A FMB, se for lembrada durante o atendimento médico, se o paciente informar dados epidemiológicos importantes como por onde andou, o que fez, se achou algum carrapato, etc., pode dar a informação vital ao médico e assim ter um desfecho favorável pois o tratamento feito temporaneamente (em até 72h após o início da febre) é simples, barato e disponível na rede de atenção básica e em farmácias.
No interior do Estado de São Paulo, essa bactéria é transmitida pelo carrapato denominado Amblyomma sculptum, conhecido como “carrapato-estrela”, quando ele parasita seres humanos e animais, como por exemplo, as capivaras e os cavalos, que são os principais hospedeiros desse carrapato.
As bactérias se disseminam e são transmitidas entre os carrapatos. Carrapatos infectados eliminam a bactéria na saliva depois de ficar fixado em um hospedeiro, incluindo o homem, por um período mínimo de quatro horas, quando acontece a transmissão para o indivíduo que está parasitado pelo carrapato infectado.
Ao contrário de outras doenças infecciosas, a FMB não conta, atualmente, com a possibilidade de vacinação ou quimioprofilaxia, o que torna muito importante a implantação de medidas de prevenção ao parasitismo dos carrapatos. Uma vez que a maior parte dessas medidas depende de alteração no comportamento da população, haverá maior êxito mediante ampla divulgação e mobilização social.
Igualmente importante é a manutenção dos profissionais de saúde capacitados para identificar precocemente os casos suspeitos, de forma a iniciar o tratamento específico rapidamente, o que determinará a diminuição no risco do êxito letal.
Os cuidados são e serão sempre os mesmos e devemos divulgar informações aos cidadãos e profissionais e com isto tentar reduzir a morbi-mortalidade desta doença.
Infelizmente, perdemos vidas de jovens, sadios e com uma doença potencialmente curável. Novamente, as chaves de seu enfrentamento, no momento, são principalmente, a informação e a educação. O monitoramento dos ambientes de maior risco também são críticos. Não podemos perder esta guerra que como viram, é bastante dura e complexa.
(1)- Donaliso MR, Freitas ARR, von Zuben A: Arboviroses emergentes no Brasil: desafios para a clínica e implicações para a saúde pública. Rev Saúde Pública 2017; 51:30.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022 e atual Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.
Andrea von Zuben é doutora em Epidemiologia e Diretora do Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas.