Uma das principais causas de falhas na coleta de grãos da nossa agricultura é a falha (e/ou falta) de rastreio adequado. É natural que análises por amostragem deixem “escapar” algum parâmetro previsto no projeto inicial. Da mesma forma, ainda que alguns gaps aconteçam, é primordial que as amostras representem um universo pré-determinado. Mas temos de nos ater a um fato irrevogável: se a amostragem não for feita corretamente, resultados oriundos dessas análises podem refletir entendimentos incompletos e levar a decisões equivocadas.
A analogia com a colheita de grãos é trazida para o início deste artigo para elucidar um cenário que começa a ser observado e tornou-se um dos objetivos do Programa de Equidade da ABHH, a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular.
A ABHH tem como um dos pilares deste Programa, propagar a prática de estratégias para criar diversidade, equidade, inclusão e acesso em estudos clínicos, baseado em possibilidades efetivas de doenças e tratamentos dos mais diversos perfis de pacientes.
A ABHH também acredita que quando os estudos não levam em consideração os determinantes sociais de saúde, barreiras de acesso e desigualdade podem ser observadas, contribuindo para as disparidades nas taxas de mortalidade entre doentes de diferentes raças. E para corroborar com este cenário, de acordo com um estudo publicado na revista Blood Advances (1) da ASH (Sociedade Americana de Hematologia), as disparidades no tratamento de doenças hematológicas podem estar relacionadas com a sub-representação de pacientes negros e outras minorias raciais, dentro dos ensaios clínicos.
A informação sobre a raça é frequentemente omitida nos ensaios clínicos, o que resulta na aprovação regulamentar, mas é pior em estudos que não são abrangidos pelo âmbito regulamentar. Como exemplo prático, podemos citar o cenário das doenças falciformes e a carência, ainda latente, de um olhar direcionado para a população negra no Brasil, uma vez que a incidência da doença é maior para este perfil. Ou seja, isso reflete diretamente na disparidade de tratamento em grupos menos privilegiados em estudos clínicos.
Outro exemplo a ser profundamente observado diz respeito à disparidade no tratamento do câncer e reflexos na mortalidade de pacientes negros e outras minorias raciais que não participaram, de maneira representativa e proporcional por amostragem demográfica, de estudos clínicos anteriores.
Mais um exemplo tem relação com um artigo publicado na revista Blood (2) de abril deste ano, o qual se baseia em um cenário que analisou nove grandes ensaios clínicos de um grupo cooperativo de casos recém-diagnosticados com mieloma múltiplo. O dado chocante é que por mais de duas décadas apenas 18% dos participantes eram não-brancos. A disparidade causa estranheza se estamos falando de uma doença com taxas de incidência duplas para pacientes negros do que aquelas observadas em pacientes brancos, tendência esta que se estende para as taxas de mortalidade.
Este artigo tem a intenção de fazer uma provocação a nós, profissionais da saúde – e também à sociedade civil – para a forma como lidamos com processos científicos em geral e como nos comportamos enquanto cidadãos ao olhar para o próximo.
Na linha do que a opinião pública tanto discute na última década (igualdade e justiça social para grupos menos representativos), é necessário avaliar e considerar as diferenças socioeconômicas entre as populações que participam dos estudos clínicos, para garantir que todas as pessoas tenham acesso igualitário aos tratamentos e oportunidades de participação. Levantar a bandeira da empatia (e da equidade) também diz respeito a confrontar verdades e práticas tidas como inquestionáveis.
É dever de todo cidadão e cidadã se manter informado e levar ao seu grupo de influência a necessidade de revisitar conceitos através de lentes diversas e mais inclusivas.
(1)- Birhiray MN and Birhiray RE. Practical strategy for creating diversity, equity, inclusion, and access in cancer clinical research: DRIVE (commentary). 24 April 2023, volume 7, number 8, 1507-1512
(2)- https://ashpublications.org/blood/article/133/24/2615/261449/With-equal-access-African-American-patients-have
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan.
Aline Pauli Pimenta Aché é gestora na Associação Brasileira de Hematologia e hemoterapia (ABHH) e especialista em administração e marketing.
Danilo Gonçalves é jornalista com foco em Saúde e estudante de estratégias de Advocacy e Políticas Públicas.