Woody Allen estreia novo filme no Brasil fazendo o que sempre fez: humor inteligente, comédia para divertir (quase nunca para gargalhar), proposição de dilemas sobre o quais a história gira e citação de ídolos da arte, do cinema, da literatura e da música, pouco se importando quando o chamam de repetitivo e, pior, quando, moralista e demagogicamente, criticam a vida pessoal dele.
Repetitivo? Ouçam Bach – referência absoluta na música. Como não se repetir em mil composições? O que importa é o conjunto e o apuro. Ao fim, permanecem as grandes obras. E Allen coleciona umas quantas delas.
Vida pessoal? Vivemos, hoje, o mundo do julgamento, no qual todos apontam dedos para o outro – nunca para si mesmos. O modo como Allen lida com as próprias neuroses não nos diz respeito; a obra dele, na condição de artista, sim.
O Festival do Amor (Rifkin’s Festival, EUA/Espanha/Itália, 2021, 88 min.) não é uma grande obra. Talvez se destaque entre os filmes baseados em cidades sobre as quais o cineasta tem se dedicado nos últimos anos por conta da ausência de financiamento de estúdios para produções dele.
Aos 86 anos, o longa serve de alento ao espectador que substitui com prazer efeitos especiais de última geração pelas sequências singelas que surgem nos sonhos de Mort Rifkin (Wallace Shawn). O protagonista reinventa a vida evocando cenas de Jules et Jim (François Truffaut, 1962), de Acossado (Jean-Luc Godard, 1960) ou de O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1967), entre outras.
Estabelecer conexões com tais obras e modificá-las (no filme de Bergman, ele se encontra com morte, interpretada por Christoph Waltz) evidencia a inteligência e a graça do cineasta muitas vezes taxado pelo simplista sinônimo de “chato”. Ademais, ante a poderosa imagem, marca do cinema, Allen não esconde a palavra, antes, a compõe e a complementa. Isto vale mais do que os bilhões gastos com efeitos – que envelhecem no exato momento da primeira exibição deles na tela. E, afinal, não somos robôs nem super-heróis. Somos humanos e os sentimentos são nossa identidade.
Engana quem considera saudosista tal postura. O filme nada tem do ranço contido na palavra explicitada no lamento “oh, como era verde meu vale”, como se só existissem coisas boas no passado e o presente fosse lixo completo.
O filme acompanha as peripécias da mulher do hipocondríaco Mort, Sue (Gina Gershon), nos afazeres de assessora de imprensa no festival. Ela se encanta pelo jovem cineasta francês, Philippe (Louis Garrel), e coloca juventude e velhice em confronto. O próprio, Mort, enciumado, repete o movimento da mulher ao se ligar à atormentada, linda e jovem médica espanhola, Jo Rogers (Elena Anaya).
Como se vê, não se trata de mero exercício de saudosismo, mas de ilustrar manifestações do comportamento cotidiano, como baixo autoestima, morte, separações, decepções etc. Ou seja, o comezinho de todos nós.
Quando evoca o grande cinema europeu do passado (exceção de Cidadão Kane, de Orson Welles, 1941), Woody Allen oferece referências com belas e significativas imagens que despertam sentimentos. Isto é cinema: conjunto de imagens (e palavras) postas em movimento com o objetivo de nos emocionar.
Elas destacam, criticam, ironizam, incensam, sensibilizam e simbolizam traços disto que somos: humanos dotados de dores e alegrias, desejos e frustrações, fantasias e realidades. Nelas estão concentradas memórias, DNA, ancestralidade.
O cinema contemporâneo, em contraposição, não esquece tais manifestações imagéticas, desde que tragam lucro. Em que pese ser bem-feito e ter qualidades, é um cinema essencialmente comercial e que se coloca como única alternativa – o cineasta francês Philippe encarna o legítimo representante dessa tendência.
Aos mais jovens, as referências ao passado parecerão aborrecidas, até porque se faz necessário cultura cinematográfica. Quem sabe, Allen aposte no desafio de, por meio do filme, levar o espectador a se interessar por tais referências. Mas não é preciso ser cinéfilo para apreciar O Festival do Amor. Basta sensibilidade e gostar de cinema. Basta ser humano com todas as contradições próprias do ser humano.
O filme estreia nesta quinta-feira, 06/01/2002, em Campinas, nas redes Cinepólis do Shopping Galleria e Kinoplex do Shopping D. Pedro
João Nunes é jornalista e crítico de cinema