Se a regra ancestral do olho por olho for aplicada, nós nos transformaremos em um mundo habitado por deficientes visuais. Uma variação mais sucinta desta frase pode ser ouvida por um dos personagens de Filhos do Ódio (Son of the South, EUA, 2021, 1h45 min.), de Barry Alexander Brown, filme produzido por Spike Lee e baseada em história real.
Trata-se de constatação óbvia, mas difícil de ser incorporada por parte da sociedade movida a preconceitos. Felizmente, as tentativas de quem pensa desse modo primitivo não têm prevalecido, pois continuamos enxergando. O contexto dela são os acontecimentos conflituosos que ocorreram nos anos 1960, no estado norte-americano do Alabama.
O roteiro do diretor e do ativista Bob Zellner foi escrito com base no livro autobiográfico de Bob, The Wrong Side of Murder Creek, em conjunto com Constance Curry. No filme, interpretado por Lucas Till, o ativista é branco e neto de um membro da Ku Klux Klan – o grupo radical baseado nos Estados Unidos que prega a suposta supremacia branca.
Por terem pele clara, a organização defendia que seus integrantes eram melhores que os negros. Os negros poderiam inverter a lógica e estabelecer que eles, por serem negros, eram superiores. Mas, então, o preconceito só mudaria de lado.
É preciso entender que a qualificação de alguém se baseia no caráter; jamais, na aparência. Ou seja, não é a pele diferente a razão da diferença. E, isso, os brancos da Ku Klux Klan nunca entenderam.
Tanto que, quando garoto, Bob era incentivado a agredir negros com tacos de basebol. O ato de extrema violência e desdém pela criatura humana é apenas o início do que veremos em relação ao ódio cultivado pelo avô (Brian Dennehy).
Mas o branco Bob, que tem amor e não desprezo pela humanidade, felizmente, não incorporou essa violência; ao contrário, ela lhe serviu de combustível para questionar a segregação racial nos Estados Unidos e acabou se tornando ativista da causa negra. Obviamente, a opção provoca estranhamento em brancos e negros, em especial, no avô. Bob não estranhou e, na primeira oportunidade que aparece, ele se torna voluntário no escritório de entidade que luta pelos direitos civis dos negros – mais tarde, será empossado primeiro secretário branco do Comitê Coordenador Estudantil Não-Violento (Student Nonviolent Coordinating Committee).
Aqui, portanto, temos outro dado importantíssimo que sustenta o filme: de que adiantará mais um grupo disposto a cegar alguém que pensa de modo contrário? Bob se envolve na entidade porque acredita que ódio destrói e amor edifica. Ou seja, a luta é pela conquista, sim, dos direitos civis, mas sem furar o olho do outro – não mais olho por olho e dente por dente.
Veja o trailer nesse link https://www.youtube.com/watch?v=TXcmYBm3f-8
Ele sabe que escolheu o caminho mais difícil, mas, logo se envolverá com líderes negros da época, como Rosa Parks, famosa por, em 1955, se recusar a ceder o assento de ônibus a um branco e acabou por detonar boicote aos coletivos de Montgomery, capital do Alabama. Também irá se interessar por uma mulher negra, Carol, a bela Lucy Hale. Ou seja, Bob está mergulhado de corpo e alma em um movimento que, aparentemente, não lhe dizia nada e fez dele, o objetivo de vida – vida longa, pois, aos 82 anos, segue ativo na causa social.
Cinematograficamente, Filhos do Ódio nada tem de especial; pelo contrário, é um filme comum em sua narrativa linear com alguns flashbacks, tampouco tem atuações marcantes, ou algo que se destaque. Apesar disso, ele se constrói com aquilo que é essencial porque tem algo a dizer.
Quem sabe no novo mundo almejado por todos nós para breve não nos caia a ficha e entendamos que só existe futuro para a humanidade se ela compreender o sentido da não-violência e do não preconceito. Um verso da música Um Novo Tempo, de Ivan Lins e Victor Martins, poderia servir de lema “Para que nossa esperança seja o caminho que se deixa de herança”.
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João Nunes é jornalista e crítico de cinema