Meus irmãos e primos sempre me chamaram de “neguinha”, um apelido carinhoso que me acostumei com o tempo, o adjetivo por razões óbvias, no diminutivo talvez por ser a prima e irmã mais nova. Quando criança me sentia especial, a matriarca da família chamamos de “negona”- a tia Maria Nilza – nada mais justo! Na minha cabeça, se a mais velha era “negona” a mais nova por regra deveria ser “neguinha”.
Aos onze anos a palavra que refletia tanta doçura dentro de casa ganhou novo significado, na escola durante um daqueles debates um aluno branco gritou bem alto com tom de desprezo “aquela neguinha ali”; muitos riram.
A neguinha era eu. Cada sílaba da frase me alcançou com peso, mais tarde em casa demorei mais de trinta minutos me esfregando no banho, tentando arrancar com força (e lágrimas) a melanina que sempre esteve presente. Sou daquelas pessoas que demora um pouco para entender e processar alguns sentimentos, mas naquele dia, subitamente, me conheci como uma menina negra.
“A me perguntar eu sou neguinha?
Era uma mensagem lia uma mensagem
Parece bobagem mas não era não
Eu não decifrava, eu não conseguia”
Eu sou neguinha – Caetano Veloso
Questionei-me durante um bom tempo sobre como a mesma palavra soou tão diferente nos dois contextos e sigo no questionamento entendendo o caráter estrutural do racismo. Infelizmente essa estrutura consegue alcançar aspectos afetivos e transformá-los em microagressões. Segundo o mestre e doutor Adilson José Moreira, temos diferentes projetos de dominação racial, não existe “um só racismo”, mas sim, projetos raciais.
Descobrir-se negro não é apenas perceber que a cor da pele é mais retinta, mas entender o que a quantidade de melanina e traços negróides provocam. No Brasil, também é abrir os olhos para a urgência que temos em alcançar a democracia racial e um convite, quase uma convocação, para deixarmos de romantizar a escravidão, que resultou em tantas mazelas e estigmas sociais que levam à marginalização de pessoas negras.
A poeta, coreógrafa, ativista afro-peruana Victória Santa Cruz descreve em seu poema “ Gritaram-me negra!” como foi o seu processo de autodescobrimento.
Tinha sete anos apenas,
apenas sete anos,
Que sete anos!
Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua
me gritaram Negra!
E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia. (…)
E me senti negra,
Negra!
Como eles diziam
(…)
Negra! Negra! Negra!
E daí?
Negra!
Sim
Negra!
Sou
(…)
E vou rir daqueles,
que por evitar – segundo eles –
que por evitar-nos algum dissabor
Chamam aos negros de gente de cor
E de que cor!
NEGRA
E como soa lindo!
NEGRO
E que ritmo tem!
(…)
E bendigo aos céus porque quis Deus
que negro azeviche fosse minha cor
E já compreendi
AFINAL
Já tenho a chave!
Negra sou!
Estamos numa luta constante para ressignificar esses aspectos alcançados, pensando num futuro não muito distante onde crianças, mulheres e homens entendam-se negros através do empoderamento e não da injúria racial.
Fica aqui o meu convite para disserminarmos a educação antirracista.
Majori Silva, 22 anos, é escritora e lidera um coletivo na gestão de uma biblioteca comunitária